Hidrogénio e combustão interna. Alternativa para os motores do futuro?
Autor: Fernando Pedrinho
Agosto 9, 2024
Já ouviu falar da associação entre hidrogénio e combustão interna? E o que sabe realmente do assunto? Será o futuro para os motores de motos? Ultimamente temos assistido a um desacelerar do apetite por veículos totalmente elétricos. A surpresa e novidade, acabaram por dar lugar a uma notável deceção. O medo criado pela legislação anunciada…
Já ouviu falar da associação entre hidrogénio e combustão interna? E o que sabe realmente do assunto? Será o futuro para os motores de motos?
Ultimamente temos assistido a um desacelerar do apetite por veículos totalmente elétricos. A surpresa e novidade, acabaram por dar lugar a uma notável deceção. O medo criado pela legislação anunciada pelos governantes europeus, levou a um pânico generalizado que os veículos que conhecemos num formato centenário – com motor de combustão – pudessem vir a ter de parar já em 2030. E muito fabricantes – essencialmente da indústria automóvel – alinharam pelo mesmo diapasão, anunciando a total eletrificação das suas gamas já no final da década.

- Texto: Fernando Pedrinho
- Revisão por pares: António Nicolau
- Fotos: Kawasaki Motors, Liebherr, BMW, Toyota, Alberto Pires
O último ano tem sido fértil no retrocesso desta tendência extremista e ‘talibânica’. A demonização dos motores diesel é disso um bom exemplo, mas aos poucos vai-se dando conta que o plano de descarbonização talvez tenha sido demasiado ambicioso em termos de cronograma. Para não dizer caro e inalcançável nos termos em que foi proposto. As indústrias pesadas, como a mineira ou a aviação, terão de pensar em alternativas não totalmente elétricas, como os combustíveis alternativos. O hidrogénio é uma fortíssima possibilidade. Mas será uma alternativa viável para os motores ligar o hidrogénio e combustão interna?

Será a união entre hidrogénio e combustão interna o futuro?
A tábua de salvação que se antevia para a indústria automóvel europeia com a sua total eletrificação, foi afinal um fiasco. Não só a Tesla domina este segmento de mercado a seu bel-prazer, bem como acabámos inundados por veículos chineses vendidos abaixo do preço de custo e que estão mesmo a gerar preocupações a nível de segurança nacional, como se viu recentemente no Reino Unido. E nas motos… a eletrificação é residual e, quando bem feita, o preço de venda de uma moto elétrica faz-se notar.
Isto é o que acontece quando se metem políticos a fazer o trabalho de engenheiros, colocando a ambição e vontade de aparecer na fotografia à frente do conhecimento e dos factos. Faz-me lembrar as afirmações de um Ministro do Ambiente nacional, conhecido por circular acima dos limites de velocidade, acerca dos perigos das motorizações a diesel. Numa altura em que os veículos modernos, nalguns sítios, libertam pelo escape um ar mais limpo do que o que admitem para o interior dos cilindros, tal a gama de dispositivos atualmente existentes para depuração dos gases gerados pela combustão de combustíveis fósseis. Quando o conhecimento demonstrado dá lugar ao sensacionalismo ignorante… dá nisto!

O problema elétrico
A eletrificação da mobilidade pública e individual deveria ser vista como uma estratégia de descarbonização das nossas cidades e trajetos interurbanos. Já vimos que os veículos elétricos enfermam ainda de vários problemas de juventude inerentes a uma tecnologia relativamente recente (face aos motores de combustão interna), como é o caso das baterias. Autonomia, tempo e infraestrutura de carregamento são as maiores. Se varrermos para baixo do tapete, o custo da reciclagem e eliminação das baterias é apenas um ‘tsunami’ que se está a formar e nos devastará num futuro não muito distante, se para isso não nos precavermos.
Perante o custo e intensidade de recursos que este programa de eletrificação massiva tem acarretado, a procura por fontes de energia alternativa tem sido contínua. Os combustíveis sintéticos existem de há muito na Fórmula 1 e no MotoGP a percentagem não fóssil é cada vez maior. No caso dos motores a diesel, muitos são já os que aceitam biodiesel ou os chamados HVO, ou óleos vegetais hidrogenados. Para um aumento médio de 5% de consumo, os seus utilizadores passam a ter uma fonte de energia 100% renovável, daí a designação HVO100. Falamos de um combustível que gera até menos 33% de micropartículas, menos 30% de hidrocarbonetos não queimados, até menos 24% de monóxido de carbono, e até menos de 9% de óxidos de azoto (NOx), como anuncia a Epiroc, um conhecido fabricante de equipamentos para o setor mineiro. Mas isto é para os motores a diesel.

E para os motores que equipam as nossas motos?
Os combustíveis sintéticos são a opção mais rápida. Mas são caros e a produção ainda é escassa. E o hidrogénio? De facto, é tentador pensar no elemento mais abundante e disponível do universo. Seja no ar que respiramos ou na água do mar. Sim, porque o sol, a estrela mais próxima do planeta Terra, é uma enorme fornalha nuclear de hidrogénio. Mas está longe e para o recolher teríamos de ir lá de noite, como diz a piada.
Por outro lado, a eletrólise da água é um processo físico-químico pouco eficiente. Desde logo porque requer bastante energia para quebrar as ligações entre os dois átomos de hidrogénio e o de oxigénio. É o contrário disto que acontece nas chamadas pilhas de combustível, utilizadas pelos veículos FCEV (do acrónimo inglês ‘Fuell Cell Electric Vehicles’). Como é o caso dos autocarros que vemos nas nossas cidades. Ou em modelos como o Toyota Mirai ou o Hyundai Nexo (ah… outra vez os carros). Onde os catiões de hidrogénio voltam a combinar-se com oxigénio para formar moléculas de água, depois dos eletrões terem cumprido a sua função motriz.

Com uma bomba às costas?
Na verdade, os FCEV não passam de veículos elétricos ainda mais complicados. Que em vez de ligarmos à corrente, temos de encher um tanque com hidrogénio líquido, pressurizado a 700 bar, ou 70.000 kPa! Ou seja, andamos com uma bomba prestes a explodir nas nossas costas, salvo seja. Felizmente, a tecnologia está bem desenvolvida, e desde o processo de reabastecimento a situações de sinistro com impacto violento, não temos assistido a qualquer tipo de incidente espetacular relacionado com o contacto do hidrogénio com o ar atmosférico.
Mas e se em vez de gerar eletrões, para o motor elétrico, utilizássemos o hidrogénio liquefeito para substituir a gasolina?

A aposta alemã
A BMW já o fez no passado, e recordo os 760iL que a casa de Munique construiu entre 2005 e 2007 e utilizava para os mais variados fins em redor da capital bávara, nas mãos de figuras de renome do ‘jet set’ alemão. As 100 unidades dotadas com o possante V12 de seis litros que equipava este Hydrogen 7, podiam gastar 50 litros por 100 quilómetros percorridos (face aos 15,5 quando utilizava gasolina). O que não é de estranhar face à menor densidade deste elemento no estado líquido, comparativamente à gasolina. E como na altura os reservatórios de combustível estavam pressurizados a um máximo de 350 bar (35.000 kPa), a autonomia resultava algo escassa… Quase como num elétrico quando utilizado em autoestrada a alta velocidade.

Esta possibilidade de reutilizar hidrogénio em motores de combustão interna tem sido retomada, curiosamente, pelos fabricantes de motores industriais, apesar de já aqui em MotoX.pt termos dito que a Kawasaki tem estado a estudar essa alternativa, sabido que é o seu elevadíssimo compromisso e investimento com a produção de hidrogénio nas próximas décadas. No caso dos primeiros, marcas como a Liebherr ou a Kohler têm desenvolvido projetos que lhes permitam, de uma forma mais rápida e económica, utilizar e manter o seu conhecimento sobre motores de combustão interna, tentando mudar para o combustível que, de tão poderoso, consegue mesmo derrubar governos nacionais, como sucedeu neste retângulo à beira mar plantado.
Limpar com água a pegada de carbono
Esta é, sem dúvida, uma opção muito apelativa para diminuir a pegada de carbono, mantendo uma base sobejamente conhecida. É pura fruta madura, pronta a colher, com um investimento infinitesimamente inferior ao de desenvolver uma tecnologia de raiz, mas em que especial atenção é requerida pelo sistema de injeção. A médio prazo, com a produção e redes de distribuição estabelecidas, o hidrogénio – sobretudo o verde, gerado por energias renováveis – poderá ser algo de muito interessante para a mobilidade individual utilizando motores baseados num conceito centenário. Bom, talvez um pouco menos para as motos, mas já lá vamos.

Um motor de combustão a hidrogénio utiliza, praticamente, a mesma base de um motor a gasolina, ou diesel. Portanto, sem grandes modificações a nível de peso ou dimensões, não obrigando, por isso, a redesenhar de forma profunda o chassis ou quadro. Para além disso, beneficiamos da imediata vantagem de dispensar qualquer tratamento pós combustão (leia-se catalisador, embora se possa gerar algum óxido de azoto, NOx) e um sistema de escape muito simples que apenas emitiria vapor de água. Para além disso, adicione-se maior densidade energética (em termos de massa, o hidrogénio tem uma densidade energética de 120 megaJoules por quilograma, face aos 45,8 MJ/kg da gasolina, se bem que se considerarmos simplesmente o volume a conversa seja outra), dispensabilidade de baterias, custos de produção mais baixos e uma elevada maturidade tecnológica.
Base comum, combustível diferente

Os níveis de prestações são muito idênticos e a tecnologia para o transporte a bordo do hidrogénio está bastante dominada, a ponto de as autoridades europeias, norte-americanas e japonesas, por exemplo, aceitarem que os construtores passassem a adotar tanques pressurizados a 700 bar (70.000 kPa), face aos anteriores 350 bar (35.000 kPa). Na prática, significa que um veículo que, por exemplo, percorresse 250 quilómetros com um depósito cheio, passou a duplicar essa autonomia.
A título de curiosidade, para a entrega de hidrogénio a estas pressões (700 bar), as pistolas de reabastecimento apresentam um diâmetro interno de 4 milímetros e combinam-se com mangueiras duplas de 13,6mm de diâmetro externo.

A opção da Liebherr
A Liebherr é uma marca suíço-alemã que, entre muitos tipos de equipamentos, também fabrica motores. A marca tem desenvolvido uma tecnologia que chamou de LPDI, que se pode traduzir como injeção direta a baixa pressão, que funciona com pressões de injeção de combustível de 30 a 60 bar (435 a 870 psi). Isto se compararmos com os 2.000 bar (29.000 psi) que se verificam no injetor de um sistema de rampa comum, ou ‘common-rail’ de um motor a gasolina.

Como me explicou Stefanie Gerhardt, diretora da área de negócios de sistemas de injeção da casa sedeada em Bulle, no cantão suíço de Friburgo, o sistema de baixa pressão de injeção é baseado na tecnologia de câmara de combustão com recurso a vela de ignição. Há que entender que a atuação de um injetor de um gás é bastante diferente da requerida para um injetor de gasolina ou gasóleo.
Para começar, o efeito lubrificante da gasolina ou do gasóleo é inexistente. Na prática, o injetor trabalha a seco, sem óleo de lubrificação, já que este poderia contaminar o hidrogénio injetado. Este aspeto requereu investigação de raiz por parte da Liebherr. É que a marca não tem na sua gama de produtos qualquer solução com injeção de gás natural. A agulha do injetor foi o aspeto mais sensível, por forma a garantir um desenho que garantisse um nível de abrasão tão baixo quanto possível, para garantir a durabilidade necessária do injetor.

Os efeitos do hidrogénio
Um dos problemas provocados pela utilização do hidrogénio reside na fragilização que induz nos metais. Por ser extremamente reativo, a difusão do hidrogénio no interior de um material torna-o mais frágil. A Liebherr contornou este problema recorrendo a aços austeníticos. Estes consistem em ligas inoxidáveis que veem a adição de níquel ou azoto na sua composição química, que os tornam mais resistentes à corrosão. Neste caso particular, tem melhor resistência à difusão do hidrogénio, assim como à fratura pelas tensões induzidas por aquele gás.

Voltando aos injetores, a parte inferior foi desenhada tendo em vista maior flexibilidade de utilização, com uma geometria assimétrica que permite ter diferentes ângulos de injeção para o interior da câmara de combustão. Estes são apenas uma parte do conjunto, já que a Liebherr está com uma visão holística e tem em desenvolvimento os restantes componentes como o controlador de pressão o medidor de caudal de hidrogénio.

Viável para as motos?
Se nos basearmos na experiência do BMW Hydrogen 7, diria que não. E o problema reside no fato de necessitarmos de um tanque de elevado volume, para comportar (a uma pressão já de si elevada e limitada por lei) a maior capacidade de gás possível. No seu tanque de 170 litros de volume, o Hydrogen 7 conseguia armazenar oito quilograma de hidrogénio, num motor cujo consumo médio era de 50 litros por 100 quilómetros.
Numa comparação direta, um tanque de 25 litros de uma moto daria para percorrer… 50 quilómetros. Bom, na verdade talvez um pouco mais. Isto porque os tanques passaram a ser pressurizados num valor limite de 700 bar o que daria para armazenar à volta de 2,5 kg de hidrogénio. E o consumo de um motor mais pequeno de uma moto seria, por certo, inferior ao do guloso V12 bávaro. Contudo, cerca de 100 quilómetros com um tanque para uma moto topo de gama… muito esforço para tão parco resultado.

Kawasaki com motor de avião
E a prova disso vem patente na Kawasaki H2 HySE que conhecemos no ano passado durante a Visão do Grupo 2030. Neste evento, o presidente e diretor executivo da Kawasaki Motors, Hiroshi Ito, anunciou este protótipo baseado na H2SX sobrealimentada. Bem como a vontade de a ter em venda ao público no final desta década. É inegável que a Kawasaki continua a acreditar que os motores de combustão interna podem trocar a gasolina pelo hidrogénio. A prova adicional disso é o seis cilindros em linha, com versões a gasolina e hidrogénio, apresentado no Paris AirShow do ano passado. Motor destinado ao Cassio 330, um avião híbrido de 12 lugares concebido pela VoltAero. Vistos de fora, são exatamente iguais, apenas se diferenciando pela cor das tampas das válvulas.

Mas qual a necessidade da sobrealimentação, seja por via de um turbo compressor ou de um compressor volumétrico? Aqui há outro aspeto curioso a ter em conta. É que enquanto a gasolina requer 14,7 partes de ar para uma parte de combustível (a relação estequiométrica, que tem vindo a ser contornada nos motores de mistura pobre), já o hidrogénio requer muito mais ar para a sua combustão. Na verdade, são 34 partes de ar para uma de hidrogénio, em termos de massa. Apesar de também aqui os motores a hidrogénio poderem funcionar com misturas mais pobres. Ou seja, necessitamos de meter quantidades muito superiores de ar para o interior dos cilindros (mais do dobro do necessário para um motor a gasolina), daí o recurso obrigatório à sobrealimentação. Mais peso a adicionar à moto.

Porquê a sobrealimentação?
Mas o maior óbice, voltando ao assunto, nem é este. O quebra-cabeças passa mesmo pelo armazenamento do hidrogénio, que tem muito menor densidade energética em termos de volume. Já vimos que em termos de massa, o elemento mais abundante do universo supera a gasolina por quase três vezes. Mas quando analisamos em termos de volume esta vantagem desce abruptamente para um quarto do alcançado pelo combustível derivado do petróleo.
É que a gasolina consegue ser quatro vezes mais densa em termos energéticos que o hidrogénio! Mesmo quando este é adicionado no estado líquido (o que requer recurso à criogenia, ou seja, a congelação a temperaturas muito baixas). É por isso que as motos necessitam de tanques de considerável dimensão. E o que se pode ver na traseira da Kawasaki H2 HySE não são umas vistosas malas laterais de bagagem mas os depósitos de hidrogénio. Ou seja, nem espaço para bagagem, nem possibilidade de levar um passageiro. Ora bolas!

A Toyota, que é o segundo maior acionista da Yamaha, propôs tratar estes tanques laterais como cartuchos. Dada a sensibilidade da operação de reabastecimento – elevadíssimas pressões até 700 bar (5.000 psi) e o risco de reação com o ar atmosférico – a marca japonesa propôs a simples troca dos depósitos vazios por outros já cheios. Um pouco como a Gogoro tem no seu modelo de troca de baterias de scooters, ou como nós nos habituámos durante anos a ir trocar a bilha de gás lá de casa.
Há ainda muito caminho pela frente, mas a genialidade humana tem dado mostras de que o impossível por vezes não é bem assim…
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