Miguel Oliveira. Explicações sobre a lesão na Argentina
Abril 23, 2025

Na quinta volta da corrida Sprint do G.P. da Argentina, segunda prova do Mundial de MotoGP, Miguel Oliveira foi atirado ao chão por Fermín Aldeguer. Uma ultrapassagem demasiado atrevida e um erro do espanhol que atirou a moto para baixo da Yamaha YZR-M1 da Pramac Racing, levando o português a ser projetado para cair, de forma violenta, sobre o ombro esquerdo. Os exames médicos afastaram os receios de fraturas ósseas, mas a lesão sofrida acabaria por ser muito mais complicada. Fomos perceber o porquê do longo afastamento de Miguel Oliveira das pistas, junto de quem realmente sabe.

- Texto: Fernando Martins
- Fotos: Pramac e MotoGP.com
Ao ver a transmissão do Grande Prémio de Argentina, no dia 15 de março, ninguém ficou indiferente à queda de Miguel Oliveira durante a corrida Sprint. Um forte impacto sobre o lado esquerdo do corpo deixava antever o pior. Mas a ida às urgências do hospital de Santigo del Estero depois da passagem pelo centro médico do circuito, afastou o receio de fraturas, sobretudo na clavícula. E até alimentou o sonho de poder estar à partida da corrida principal.
O resultado visível foi um grande hematoma no ombro de Miguel Oliveira, mas o olhar clínico de quem conhece bem o piloto detetou outras complicações. Mesmo a milhares de quilómetros de distância, Gonçalo Morais Sarmento, reputado ortopedista com forte e longa ligação à Federação de Motociclismo de Portugal, membro da Comissão Médica Internacional da Federação Internacional de Motociclismo e atual diretor médico do campeonato JuniorGP, suspeitou que algo diferente do habitual havia ocorrido.

“Quando o Miguel Oliveira caiu, o gestor de carreia e pai, o Paulo Oliveira, foi com ele ao Centro Médico e nesse momento já estava em vídeo chamada. Ao fazer-lhe algumas perguntas o Miguel apontou, com o dedo, onde lhe doía e percebi que não era o que os elementos da equipa médica estavam a procurar. Eles estavam a fazer exames ao ombro e o Miguel Oliveira estava a dar uma resposta de dores intensas noutra zona bem específica. A partir daí percebi exatamente o que é que aquilo poderia ser”
A experiência que poupou muito tempo
Ainda sem certezas e depois dos exames médicos no centro localizado no circuito, Miguel Oliveira foi ao principal hospital de Termas de Rio Honda para fazer uma tomografia axial computorizada. “Já com o resultado da TAC nas mãos, ligou-me o Dr. Angel Charte a dar conta do estado do Miguel e a dizer que estava tudo bem e que seria feita uma reavaliação no dia seguinte”. No entanto, a experiência clínica e o conhecimento de Morais Sarmento ditaram um diagnóstico diferente, “até porque ao vestir a camisola para sair do centro médico, o Miguel Oliveira tinha sentido uma pontada e uma sensação de instabilidade na zona que eu presumia e explicou-me o que tinha acontecido”.
Por isso, e “mesmo com alguma contrariedade do Dr. Angel Charte, dei indicação para tratarem de comprar o bilhete de avião e virem embora de imediato, porque ele não estava em condições de fazer mais nada, e muito menos de voltar a montar numa moto”. O que acabou por ser confirmado mais tarde, quando Miguel Oliveira estava no quarto do hotel, a vestir-se para ir para o aeroporto e teve mais um episódio agudo de instabilidade.

Quando chegou a Portugal, o piloto foi de imediato fazer uma ressonância magnética que confirmou a previsão de Gonçalo Morais Sarmento. “Tratava-se de uma luxação externo clavicular que em termos biomecânicos pode ser explicado de forma simples. As articulações promovem a ligação entre duas superfícies ósseas, estando rodeadas por ligamentos e pela cápsula articular para se manterem estáveis e em contacto, em suma para não saltarem fora. Quando há uma entorse, há uma dor causada pelo rasgão do ligamento que, mesmo deixando o ligamento lesado, permite a recuperação com descanso. Bem pior é, digamos assim, desencaixar completamente a articulação o que implica muitas vezes a rotura total dos ligamentos”.
O azar que até foi sorte
O grande problema de toda esta situação é que, no caso de Miguel Oliveira, esta luxação aconteceu na articulação que liga a clavícula ao externo, lesão extremamente rara e que estudos clínicos apontam para representar apenas 3% das luxações do ombro.
Algo que o médico Gonçalo Morais Sarmento complementa como um dado assustador. “É uma articulação muito fina, muito estreita, mas quando luxa, isto é, quando desencaixa, é de uma gravidade extrema, porque atrás passa o coração e os grandes vasos, e pode matar”. Felizmente, ao ser reavaliado em Lisboa, Miguel Oliveira não viu confirmado o mais dramático dos diagnósticos porque “não foi a luxação mais grave que existe, que é a posterior, em direção à aorta e ao coração, e que pode matar. Foi, isso sim, uma luxação na parte frontal e, portanto, dentro de todo o azar, foi a que tinha melhor prognóstico”.

A atitude em relação a outros médicos envolvidos no processo, tanto da equipa Pramac, como da Yamaha e mesmo da DORNA, foi sempre a mais cooperativa tendo sempre em atenção os interesses da saúde do piloto luso. E da análise de todos os dados e da longa experiência nas corridas, que acompanha há mais de 30 anos, Gonçalo Morais Sarmento.
O airbag existente nos fatos é uma das questões no centro da polémica. Não que a sua utilidade e mais-valia seja colocada em causa, mas há detalhes como os pontos de detonação dos airbags, que são mais sensíveis. O artefacto que deveria salvar o piloto em todas as situações e ser sempre benéfico, pode, afinal, ter alguns contras. Os airbags dos pilotos de MotoGP, como, naturalmente, o de Miguel Oliveira, são desenvolvidos para proteger o peito, costas e ombros. Ou seja, o tórax anterior, dorsal posterior e os ombros.
Almofadas para salvar vidas
No entanto há questões cinéticas, como por exemplo, os efeitos que ocorrem quando o airbag é acionado. “Quando insufla anteriormente, é criada uma almofada de ar entre o peito e o fato. Mas quando insufla nos ombros, existem as ombreiras que, tal como as cotoveleiras e joelheiras, são peças de carbono. E ao insuflar face a uma superfície tão rígida como é uma ombreira, e com a própria configuração ‘triangular’ do airbag, começando junto ao pescoço, mas depois desviando para fora podem surgir problemas” explica o presidente da Comissão Médica da FMP.

Continuando a linha de pensamento, Morais Sarmento explica que ao desenvolver o airbag, “o pensamento lógico passa por proteger as fraturas da clavícula e os impactos do ombro, que são, indiscutivelmente, os mais frequentes. Só que não há maneira de fazer o airbag ser insuflado noutra ‘linha’ que não aquela diagonal do pescoço até ao braço. Ou seja, passando pelo meio da clavícula”.
Por isso, no caso de Miguel Oliveira, “mesmo sem uma certeza infalível, pode ter acontecido que, ao bater com o ombro, surja um trauma que, com o enchimento de um airbag no mesmo momento, faz um efeito violento de retropropulsão. Isto é, o ombro sofre um esticão muito grande, vai para trás, e ao ir para trás não partiu a clavícula – cumpriu a sua função protegendo – mas acabou por lesar o ponto fulcral, que é a articulação externo clavicular”.
Uma explicação que Morais Sarmento detalha de uma forma mais intuitiva. “Se empurrar a ponta externa (junto ao ombro) de uma clavícula que está na sua posição anatómica, como se ao andar batesse com o ombro numa parede, este ombro vai para trás. Mas se a clavícula não fratura, a ponta interna da clavícula vem para a frente, por um efeito de alavanca”.
“Acidente de Miguel Oliveira é algo raro de ver”
A análise da dinâmica do acidente de Miguel Oliveira em Termas de Rio Hondo “que é algo extremamente raro de ver nas corridas”, continuou em casa do piloto durante a análise ao fato utilizado pelo piloto na prova argentina. “Juntamente com o Paulo Oliveira desmanchámos o fato e observámos o airbag, foi possível definir a diagonal que levou à rotação do ombro e não protegeu a região externo clavicular, fazendo algo que nunca ninguém viu”.
Numa análise que está longe de ser simples, a questão que se impunha era saber se a lesão surge pelo facto de o airbag empurrar a clavícula para trás ou porque o ponto de detonação estava precisamente nesse sítio.

A complexidade mecânica da queda de Miguel Oliveira e a conjugação de diversas forças torna efetivamente difícil encontrar uma explicação, tanto mais que “as imagens não são conclusivas”, sublinha Morais Sarmento. “Além disso, estamos a associar um airbag, ou os seus efeitos, a uma queda. Não é um airbag sozinho que causa esta lesão! Estamos a falar de uma pessoa que está a cair, que sofre um trauma do ombro e, o que digo é que, associado ao acionamento do airbag pode ter causado isto”.
Uma complexa combinação de fatores e, no caso de Miguel Oliveira, muita má sorte. O médico dá outra razão para a imprevisibilidade deste tipo de acidentes e lesões apesar da grande evolução em todos os parâmetros do paddock. “Os fabricantes de airbags desenvolvem intensamente os produtos, testando e analisando os efeitos… mas em manequins, não com pessoas”.

E, no caso dos seres humanos, não se pode esquecer que o airbag é instalado num fato que, por sua vez tem de ser extensível, adaptável ao corpo do piloto em cada momento e perante cada exigência de pilotagem. E esse parece ser “um problema que não está completamente resolvido”.
Dito por outras palavras, “os fatos têm uma certa ciência e o airbag é como uma bolacha que se interpõe entre o fato e piloto. Um componente que não é incomodativo enquanto não é ativado, mas que, quando é insuflado, não existe uma noção completa e absoluta do que acontece”. Nomeadamente forças pouco previsíveis na dinâmica de um acidente, situação que parece estar na base das lesões de Miguel Oliveira.

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