A passagem dos campeonatos mundiais por Portugal é sempre um motivo para reencontrar o Presidente da Federação Internacional de Motociclismo: Jorge Viegas. Eloquente e com uma facilidade de discurso apenas ao alcance de alguns, o primeiro presidente luso da FIM está a caminho do final do seu mandato com uma estabilidade e altitude de cruzeiro sem precedentes.
Da pandemia à guerra na Ucrânia, das fatalidades de jovens pilotos aos mais variados campeonatos mundiais chancelados pela FIM, tocámos um pouco de tudo o que é a atualidade no mundo das duas rodas com motor. E mais: se esperam um tabu quanto à recandidatura ao cargo, leiam em seguida que decisão tomou o ex-jornalista e gestor, que tem a seu cargo os destinos da nação motociclista
- Texto: Fernando Pedrinho
- Fotos: EPA-EFE/Tytus Zmijewski e Fernando Pedrinho
O dom da ubiquidade é algo apenas ao alcance de entidades supra-humanas ou mesmo divinas. Contudo, o cargo mais alto da Federação de Motociclismo obriga a um considerável esforço de omnipresença por parte de quem o ocupa. “Tenho de dividir a minha presença pelas várias modalidades. Este ano vou estar em nove eventos de MotoGP, nas quatro provas de Resistência, outros tantos Speedways, duas rondas de Motocrosse, uma prova de Superbike e ainda nos Seis Dias de Enduro”.
O retorno a Portugal está para breve, com a primeira ronda do Mundial de Superbikes que visita o nosso país, no circuito do Estoril, onde Jorge Viegas tem planeada uma apresentação, “que já fiz no MotoGP em 2019, bem como no MXGP, e que consiste na apresentação à comunicação social de todas as pessoas da FIM que trabalham diretamente no Mundial de SBK”. O Estoril vai também marcar um ponto importante, que é a reunião do Presidente da FIM com as marcas envolvidas, “para falarmos sobre o futuro e porque houve muitas alterações no regulamento de Supersport”, com os novos modelos da próxima geração.
O estado da ‘Nação’
Para começo de festa, importava saber da parte do ‘Senhor FIM’, qual é o estado da nação da federação que gere o motociclismo a nível mundial, ainda para mais quando o seu mandato está na reta final. “Vamos ter eleições no final do ano e estou otimista. Acho que tenho feito um trabalho razoável e não vejo ninguém a apresentar-se como candidato, mas só lá para Setembro ou Outubro é que saberei se irei ter concorrência para o cargo. Não faço qualquer tabu sobre o assunto e digo a toda a gente que vou candidatar-me novamente. Tenho trabalhado para isso e tentado ‘ir a todas’, como se costuma dizer. Depois há uma situação engraçada, que comentava ontem com o Franco Uncini [Oficial de Segurança do MotoGP e ex-campeão Mundial de Velocidade 500cc]. Num dia estou com a família do MotoGP, falo com todos os pilotos e estou com todos, desde o Carmelo [Ezpeleta, o diretor executivo da Dorna] ao [Valentino] Rossi, falo com toda a gente. Mas depois de Portimão e de Jerez de la Frontera vou para o Speedway, onde estarei com o promotor do campeonato, os pilotos e os meus colegas que aí trabalham. É outra ‘família’, completamente diferente. Depois sigo para o Motocrosse, e é outra distinta. Consigo visitar sete ‘famílias’ diferentes, onde me sinto em casa e tenho amigos em todas elas. Sou o único que faz esta ligação, o que me dá um gozo enorme.”
Incontestado
A contestação que se viu com presidências anteriores não é evidente no reinado de Jorge Viegas. E oportunidades não faltaram, como uma pandemia que colocou o mundo inteiro em casa, as três fatalidades que vitimaram jovens pilotos no ano passado ou até mesmo as ondas de choque geradas pela invasão e ataque à Ucrânia por parte das forças militares russas. “Eu tive um mandato o mais pacífico possível”, reconheceu o natural de Faro. “O primeiro ano foi aquele em que tive de fazer a ‘limpeza’ de tudo o que vinha de trás. Despedi gente, admiti outros e tive de reorganizar tudo. Comecei, então, a trabalhar e veio a Covid-19. Entrou-se no que chamo o ano da resiliência, em que conseguimos organizar os campeonatos sem público, com os espaços fechados e um ‘paddock’ horrível. Mas foi nessa fase que tive um relacionamento fantástico com todos os promotores”.
Perante um cenário apocalíptico, a nau conseguiu dobrar o Cabo das Tormentas ditado pelo confinamento global, e os resultados alcançados são a melhor prova disso mesmo. “No primeiro ano, ou seja em 2020, só não consegui que se realizasse o Campeonato do Mundo de Ralis porque não houve provas. De resto, levámos a cabo todos os mundiais. No segundo, e quando pensávamos que começaria a haver alguma abertura, a incidência do vírus manteve-se.
Só eu fiz cerca de 200 testes e tivemos ‘paddocks’ com pessoas vacinadas e outras ainda por vacinar. Uma coisa horrível! Ainda assim, conseguimos fazer todos os campeonatos do Mundo, sem exceção! Tive que ajudar os promotores: os pequenos realizaram as corridas sem pagar à FIM, a outros concedemos descontos e até subsídios. E quando se esperava que 2022 fosse, finalmente, o ano da glória, veio a guerra!”
As suspensões de russos e bielorussos
Com o cenário de guerra instalado, houve medidas nada populares que tiveram de ser tomadas, afetando desde federações a pilotos, organizadores a equipas. “Recebemos uma orientação do Comité Olímpico Internacional para suspender as federações russa e bielorussa. A Direção da FIM tomou essa decisão, sem exceções. Logo de imediato anulámos todas as provas do calendário que iam decorrer na Rússia, que afetam dois campeonatos mundiais, e na Ucrânia. Lamentavelmente, a prova de ‘sidecar cross’ estava prevista para a localidade onde se cometeram as maiores atrocidades sobre a população ucraniana (Bucha, nos arredores de Kiev). Numa segunda fase reuni a Direção numa sessão extraordinária, durante a prova de MotoGP do Catar, para então decidir a suspensão daquelas duas federações e respetivos elementos, aspeto que é muito importante. Foram, não só os atletas, mas também os elementos das comissões”.
Subsiste, contudo, uma grande polémica em torno destas decisões, que não envolve diretamente a FIM. “O Comité Olímpico veio dizer que não suspendiam os seus elementos russos e bielorrussos, afirmando que os mesmos não representavam os seus países. É uma vergonha! Estou completamente contra. Fizemos o nosso trabalho e o COI, em vez de dar o exemplo, por questões políticas não o fez”.
“Se ele vier cá, matam-no!”
A FIM distinguiu-se ainda da sua congénere automóvel, a FIA, neste capítulo. “A FIA deixa pilotos destas nações correrem com licenças desportivas de outros países, ou sem nenhuma bandeira desde que assinem um documento específico. Mas nós não abrimos nenhuma exceção. Eu tenho dois campeões do mundo russos, de Speedway e Ice Speedway [respetivamente Artem Laguta e Dinar Valeev, tendo a este sucedido o sueco Martin Haarahiltunen, já este ano] que me escreveram cartas pungentes, a pedir por tudo para os deixar correr. O Laguta, por exemplo, é um miúdo fantástico e tenho amizade por ele. Mesmo só falando russo, conseguimos entender-nos. Correu sempre na Polónia, tem passaportes russo e polaco, mas corria com licença russa, que a própria Federação Russa já lhe retirou, porque ele colocou um ‘post’ numa rede social contra a guerra. De imediato foi expulso. Mesmo assim, eu não posso abrir exceções. Só que a situação ainda é pior do que isso: se o deixássemos correr com outra licença, por exemplo polaca – já que ele vive nesse país, é casado com uma polaca e os filhos são polacos – se ele hoje fosse correr à Polónia matavam-no! O Presidente da Federação da Polónia disse-me na cara: ‘nunca o vou deixar correr aqui, porque eles vão dar cabo dele!’ Matavam-no ou sovavam-no. Os polacos estão tão ressentidos com o que se está a passar na Ucrânia, porque já receberam cerca de três milhões de refugiados, que não perdoam”.
Uma questão de direitos humanos
Jorge Viegas fez mesmo questão de salientar que vê a situação, “não como uma questão política mas antes de direitos humanos. Não é pelas sanções impostas pela FIM que o senhor Putin vai parar a guerra mas, na pequena quota parte que nos cabe, temos de fazer alguma coisa. Não me venham dizer que os pilotos russos não têm nada a ver com a situação: então e os pilotos ucranianos que têm de fugir de casa para não serem mortos, fora os que não têm essa sorte (porque têm de combater) ?”
A Federação Russa enviou mesmo uma carta ao Presidente da FIM, “a ameaçar-nos que vão levar o caso para o Tribunal Internacional do Desporto. Podem ir à vontade! Os estatutos da FIM permitem que o seu presidente tome decisões em casos de força maior, como uma invasão ou uma guerra”. E para reforçar a sua decisão, o apoio da direção foi unânime: “Totalmente!”, afirmou com orgulho.
‘Easy Ride’ transparente
Paradoxalmente, o mandato de Jorge Viegas aparenta estar a ser um ‘easy ride’ no meio destes turbilhões de grande magnitude. “Até hoje não vi ninguém dizer alguma coisa contra a FIM, que fizemos mal isto ou aquilo. Tentamos ouvir toda a gente e uma coisa que eu tentei implementar na FIM, logo desde o início, foi a transparência. Mostramos tudo o que fazemos e se alguém quiser assistir a uma reunião da direção pode fazê-lo. Não temos nada a esconder. Mas o mais importante é o ambiente interno, que é fantástico”.
Mas onde é que a habilidade política e de gestão de Jorge Viegas, capaz de procurar consensos e lançar pontes entre as partes, faz a diferença? “Eu não deixo de decidir se não alcançar um consenso”, declarou taxativamente. “Nós tomamos as decisões que achamos que têm de ser tomadas. Se há algo que me cabe a mim decidir, faço-o e, graças a Deus, até hoje tenho decidido bem”.
(Continua)