A pista do Motorland Aragon é reconhecidamente um dos traçados mais difíceis do campeonato pois contém todo o tipo de dificuldades que uma moto de competição pode enfrentar. Por isso, importa perceber porque as Panigale V4R parecem estar de volta aos lugares cimeiros de forma consistente. E se Álvaro Bautista fez o que dele se esperava, já o seu companheiro de equipa, Michael Ruben Rinaldi, surpreendeu e quer confirmar que a aposta da casa de Bolonha na sua contratação não é um carta deitada fora do baralho.
Mas o que levou a este domínio Panigale?
- Texto: Fernando Pedrinho
- Fotos: Aruba.it Ducati, WorldSBK e Fernando Pedrinho
Álvaro Bautista e a Panigale V4R foram, desde cedo, bastante rápidos nos testes de pré-temporada e nalguns casos encimando mesmo a tabela dos melhores tempos. Desde o primeiro contato – na verdade, um reencontro que tardava desde 2019 – o natural de Talavera de la Reina sentiu-se logo à vontade com a V4 transalpina, relembrando o ‘banho’ de resultados com brindou a grelha nas primeiras onze corridas que marcaram a estreia de moto e piloto no Mundial de Superbike desse ano.
Álvaro este imbatível no Domingo, vencendo ambos os embates desse dia, onde se incluem a ‘Superpole Race’ e a corrida longa da parte da tarde. “Não, ninguém é imbatível”, dizia-me sorridente e com os olhos expressivos de alguém que sempre tempera com bom humor as conversas em que gosta de se expressar e alongar-se em considerações. “Lembras-te do que te disse ontem? No Sábado apenas quis terminar a corrida com um bom resultado, começar a ganhar confiança e garantir uma base estável para todo o campeonato. Acredita que coloquei muito travão no entusiasmo, mas hoje quebrei o espartilho. Senti-me logo muito bem na moto na sessão de aquecimento da manhã, tive boas sensações e senti que podia puxar pela moto. E fui para a ‘Superpole Race’ a pensar: vamos tentar! Senti uma sensação de liberdade muito especial”.
E logo na manhã de Domingo foi o se viu: uma corrida ’à lá Bautista’. O espanhol atacou cedo e logo se isolou na frente cravando cinco segundos a Jonathan Rea no final da corrida, em que liderou até ao fim. “Logo de início tentei ir para a cabeça da corrida, para forçar o andamento e rodar no meu ritmo”.
E porque era tão importante para o espanhol apanhar pista livre pela frente? “Pode parecer estranho, mas nas sessões de treino rolei sempre sozinho”, o mesmo acontecendo nas sessões de teste que antecederam a corrida inaugural do campeonato. “Configurámos a moto, sobretudo no que respeita à parte eletrónica, de tal forma que se efetuar as trajetórias, travagens e aceleração nos pontos e momentos certos funciona muito bem. Mas se sair fora deste padrão, ela deixa de render aquilo que devia. Ontem tive esta sensação e quando analisámos a telemetria percebemos ser essa a razão: alterar o estilo de pilotagem afeta bastante a resposta eletrónica da moto”.
Daí a ferocidade de Álvaro em ir cedo para frente para apanhar pista livre. “Exatamente, pois mesmo que levasse alguém atrás de mim, poderia fazer as minhas trajetórias e pontos de travagem, pois nessas circunstâncias a moto funciona bem e eu sinto-me muito confortável”.
O piloto espanhol confessou mesmo ter ficado surpreendido com a rapidez demonstrada em corrida. “Vi que todos foram rápidos de início mas depois perderam algum andamento”.
À tarde a história prometia ser outra
“Sim, porque a pista mudou muito, porque pela primeira vez – de todas as vezes que aqui andámos – o asfalto subiu acima dos 28 graus. Era importante saber quanto poderia forçar o ritmo e qual seria o limite da pista. Arranquei bastante calmo e andei duas voltas atrás do Jonathan para perceber como estavam as condições da pista e assim que processei tudo isso fui para a frente e tentei manter o meu andamento. Consegui andar no limite que o asfalto possibilitava, mas sem correr riscos”. No final, Álvaro voltou a vencer com mais de quatro segundos sobre a Kawasaki oficial de Rea, mas voltou a relembrar: “Ninguém é imbatível!”.
Contudo, elogiou o trabalho efetuado pela equipa, que é capitaneada pelo chefe de equipa que tem estado com ele e o acompanhou na ida para a Honda e, agora, no regresso à Ducati: Giulio Nava. “A moto esteve perfeita e consegui estar forte nesta corrida. Mas depois de tantos testes efetuados nesta pista isso torna tudo mais fácil. O problema vão ser as corridas que temos pela frente e apenas vamos ter as duas sessões de sexta-feira para preparar a corrida, se bem que vai ser igual para toda a gente. Mas por agora só quero desfrutar este momento.”
Piloto feliz
As efusivas celebrações de Álvaro Bautista no final de cada corrida eram a inegável demonstração de ter reganhado a alegria de voltar a vencer e estar de volta aos lugares da frente, depois do purgatório que foram os dois anos que passou com a CBR1000RR-R do team HRC. Aliviado? “(risos) Francamente, logo no Sábado fiquei contente com o segundo lugar, mas não me senti totalmente realizado porque não dei tudo o que podia na corrida, estás a entender? Mas depois da ‘Superpole Race’ foi… ahhhh posso dar o meu melhor e mostrar a toda gente que estou aqui e quero mais. Estou mais descontraído, não porque venci a corrida mas antes porque sinto-me livre e à vontade em cima da moto e agora posso dar o meu melhor e não apenas preocupar-me em chegar ao fim. Posso buscar o limite em cada curva ou travagem, mas sem o ultrapassar. É este o meu objetivo esta temporada. Decididamente a posição alcançada na corrida é importante, sem dúvida, mas o que quero é conseguir render o máximo nas condições de cada traçado”.
Panigale V4R está mais equilibrada, Bautista como um ‘rookie’
Em 2019, depois da ‘banhada’ que deu a todos na primeira corrida, disputada em Phillip Island, na Austrália, Bautista tentou por alguma água na fervura do entusiasmo gerado à sua volta, relembrando que havia ainda muito trabalho para pôr a moto em condições. Agora, como está a Panigale V4R e o que falta ainda fazer no desenvolvimento da moto de série mais próxima de uma MotoGP? “O ano de 2019 foi o primeiro da Ducati com este modelo. Nessa altura era necessário mais experiência e informação sobre a moto e experimentámos muitas soluções para perceber qual a direção a tomar no desenvolvimento da moto. Chegámos a meio da época e estávamos algo perdidos, devo confessar-te. Além disso, eu não tinha qualquer experiência neste campeonato e com estes pneus, o que também me dificultou nas indicações a dar aos engenheiros. O que vejo agora, passados dois anos, é que a moto não evoluiu muito em termos de rapidez, mas corrigiram muitos dos pontos negativos dessa altura. A moto está mais equilibrada. Sinto que estou rápido como há três atrás, mas nessa altura estava sempre em cima do limite e facilmente ia para lá dele. Agora tenho mais margem até chegar a esse limite, o que é muito importante pois permite-me pilotar rápido mas de forma mais segura.”
Mas não foi só a moto que evoluiu. “Claro, eu também cresci como piloto, depois de ter andado dois anos a evoluir outra moto, a tentar tirar o máximo delas em todas as circunstâncias, deu-me mais experiência. Sinceramente sinto-me melhor do que nunca ao longo de toda a minha carreira. Estou bem fisicamente mas também mentalmente: sinto como um novato em termos de entusiasmo.”
Não tocar na moto até ao fim da época?
Perante este cenário idílico, como vai ser daqui para a frente? Não há mais nada para mexer na moto? “Sim, mas… a primeira vez que a experimentei foi em novembro do ano passado. Não mexemos em nada e só a adaptámos para mim e para a pista. Testámos algumas variantes a nível da geometria, mas coisa pouca. Ou seja, a moto com que vencemos hoje é basicamente a mesma do primeiro contato em Jerez de la Frontera. Nota que vindo de uma moto tão complicada [a CBR1000RR-R Fireblade] foi fácil voltar a andar rápido com a Panigale V4R e a esta afinação. Pode ser que consiga definir outra configuração, mas teremos de testar muitas vezes, e mesmo assim há a possibilidade de perder mais do que ganhar face ao ‘set-up’ atual. Prefiro manter esta base e ir ajustando a moto a cada pista”.
E a informação recolhida ao longo de toda a época de 2019, pode ainda ser útil nos traçados menos familiares e com menos tempo em pista? “Sim, podemos, mas como te disse, a moto está com o mesmo nível de prestações, só que mais equilibrada. Podemos usar esses dados mas também te digo que de todos os testes efetuados até agora, nunca olhei para eles. Os pneus são diferentes dos que tínhamos em 2019: na altura não havia o SCX [o super macio traseiro da Pirelli] mas apenas o SC0, ou até mesmo um pneu mais duro. As referências estão lá mas não olho para elas”.
Álvaro não disse mas todos sabemos que esta época vai ser a sua ‘bala de prata’. Ou ganha ou o declínio pode começar no final dela, daí todos os cuidados e a preocupação com a rapidez que lhe permita obter resultados consistentes durante toda a temporada e lhe permitam voltar a ser campeão do mundo, e obviamente a Ducati, desta feita nas ‘Superbike’.
E Michael Ruben Rinaldi? Podemos contar com ele?
O italiano saiu do antigo reino de Aragão com o seu melhor arranque de sempre desde que está no campeonato. O sorriso largo era disso o perfeito corolário desta afirmação. “Esse é o lado positivo do fim-de-semana”, disse-me o natural de Rimini. “Do outro lado da moeda, se olhares para o início de ambas as corridas, consegui para o Johnny [Rea] e chegar-me ao Álvaro, porque tinha um ‘feeling’ excelente da moto. Queria apenas ir com ele, fazer jogo de equipa para abrir uma distância para os de trás e lutar pela vitória só nas derradeiras voltas, embora sem ser egoísta e comprometer o resultado de conjunto. Mas como acontece com todas as motos, há sempre uma fase da corrida em que o pneu de trás decai de rendimento, com toda a gente a debater-se com menos tração à saída de curva”.
Só que no caso do italiano a dificuldade é diferente. “Quando entro em curva e a moto desliza, torna-se impossível fazê-la e a frente tende a fechar. Quase caí por duas vezes. É altamente frustrante porque podia lutar por uma posição no pódio, mas a oito voltas do fim o comportamento da moto mudou radicalmente, tornando-se inguiável nas últimas. Apenas tenho de conseguir que a Panigale V4R mantenha um comportamento mais consistente ao longo da corrida e estarei pronto para lutar pelo ‘top 3’. Resultado consistente mas não no desempenho em corrida”.
E o protesto na ‘Superpole Race’ quando levantou o braço em protesto depois de passar Jonathan Rea para o segundo lugar? “Nada disso (risos) eu estava a cumprimentá-lo. Eu adoro as lutas com ele. Houve uma vez que ele falhou a curva e tentou evitar que o passasse. Mas isto são corridas e não me estou a queixar. Ainda hoje o Toprak tocou-me no braço esquerdo e perdi a preensão do avanço esquerdo. Estou a lutar com três campeões mundiais e eu fui apenas campeão europeu [de Superstock 1000]. Quando se luta no limite e de forma inteligente está tudo bem, a adrenalina faz o resto”.
Mas haverá mais Rinaldi para o resto campeonato, depois desta exibição na sua pista favorita e onde ganhou a sua primeira corrida no Mundial de Superbike com a Panigale V4R da Go Eleven, em 2020? “(risos) a minha pista preferida não é esta”, numa clara referência ao traçado de Misano, às porta de sua casa. “A nossa moto funciona muito bem neste traçado, ao qual o meu estilo de pilotagem também se adapta muito bem. Mas acho que em Assen também vou lá estar e só temos de trabalhar bem para nos divertirmos este ano”.
De Honda NT1100 no Motorland Aragon
O ambiente na pousada Guadalupe, situada na aldeia de Monroyo (ou Mont-Roig, em catalão) é de verdadeira ‘aficción’. Os locais convergem ao final do dia para beber umas ‘cañas’, ‘tercios’, e ‘picotear tapas’, os tão conhecidos petiscos espanhóis. Saem pratos de presunto, ’pinchos’ e um rol infindável que César Lombarte e Marisa Oloron, o casal à frente do negócio, delega na família. Conheço o filho, que tem uma BMW R1250GS, de momento com a bateria em baixo. Alerto-o para o risco em que está a colocar a muita eletrónica da moto alemã. Não vai poder ir às corridas porque é o Domingo de Ramos e vai ter muita gente a almoçar no restaurante. O ruído é característico de um bar-restaurante espanhol: ensurdecedor. Num canto, a televisão está ligada na DAZN, o equivalente nacional da Sport TV. Transmite-se a qualificação de MotoGP do Circuito das Américas e toda a gente tem um comentário. Alguns ’moteros’ vieram de Madrid e têm um pequeno iPad na mesa onde seguem a corrida. Aleix Espargaro dá com os costados no chão e Miguel Oliveira deixa-me à deriva naquele mar espanhol.
A Guadalupe é um ponto de passagem de nomes sonantes, não obstante estar situada numa aldeia de pouco mais de 300 almas. A família Sainz já lá pernoitou. Enea Bastianini também, quando era ainda um ‘chaval’. Gino Borsoi, o braço direito de Jorge ‘Aspar’ Martinez e ex-piloto mundialista, sempre que pode vai lá comer uma costeleta. Seja na ida ou na vinda. Vale a pena ficar por lá. A família é muito simpática e o ambiente descontraído, onde alguns dos locais chegam com motos de enduro a dois tempos, matriculadas.
E a NT1100? ‘Conviveu’ durante a noite com motos de todos os tipos. Maxi-trails, turísticas, desportivas… A capacidade de carga desta moto ajudou-me imenso. Levei muita tralha eletrónica mais roupa para quatro dias. As malas da Shad têm espaço suficiente e, se puderem, optem pelos sacos interiores que são fáceis de arrumar e colocar dentro delas, sem esforço, evitando ter de as levar para o hotel, por exemplo, além de que vai tudo bem mais aconchegado.
A proteção aerodinâmica está aprovada, num para-brisas que é manualmente regulável em altura, através de um sistema de encaixe, notando-se apenas alguma turbulência quando seguimos atrás de um veículo mais alto. Também num ritmo de montanha mas apertado com piso com variações de inclinação a NT1100 vai requerer alguma atenção na pré-carga de mola e que pena não ser possível fechar um pouco o hidráulico do amortecedor, mesmo que à custa de um menor conforto. Mas falo de velocidades em que os ponto da carta irão ‘à vida’ num instante.
A transmissão por corrente não é defeito… é feitio. Os indefetíveis do mototurismo não vão gostar, os outros talvez não tenham nada a apontar. Contudo, a moto não é fácil de colocar no descanso central, quando carregada, o que pode gerar alguns amuos e frustração.
Os consumos têm andando na casa dos 5,3 l/100 km, num ritmo ‘solto’ em estrada aberta. Subiram um pouco mais no regresso a Madrid, cujos mais de 400 quilómetros percorri em três horas e meia, com uma paragem pelo meio, e dois terços do percurso por uma das ‘rutas moteras’ do Baixo Aragão. O regresso foi fácil e divertido e a agora é tempo de a devolver à Honda Iberia, a quem agradeço a cortesia desta experiência de 1.200 quilómetros e, em particular, a Carlos Cerqueira.