O Lítio ainda dita as leis !

  • Texto: Fernando Pedrinho
  • Imagens: KTM AG, Sony, CATL, Epiroc, Moto-e, Wikipedia, The Eletrochemical Society

Em cerca de uma década, os veículos movidos a eletricidade viram a sua autonomia praticamente duplicar. Alguns dos automóveis mais evoluídos alcançam já sem dificuldade os 400 quilómetros com uma carga e estão para sair modelos que anunciam mais 30% sobre esta cifra. As motos seguem o que a indústria automóvel tem vindo a desenvolver, muito embora haja soluções muito interessantes e exclusivas, como a simples troca de baterias em menos de um minuto, algo impensável num ‘quatro patas’.

Muito do crédito ao que hoje assistimos em termos de performance elétrica deve-se em grande parte ao mais leve dos metais: o lítio.

Em 1991 a Sony lançou as primeiras baterias de iões de lítio, que designava de ‘Li-ion’. Os que ouviram música através dos Minidisk da marca japonesa – como o MZ1, lançado em 1992 – devem lembrar-se destas finas e leve baterias, cuja carga dava para muito tempo de Red Hot Chili Pepper, Boyz II Men ou para dançar as músicas dos Chic, Ceci Peniston ou Haddaway.

As células ‘Li-ion’ devem o seu nome ao movimento que ocorre no seu interior de iões de lítio. Os iões resultam de átomos de Lítio que perderam um eletrão e ficam assim com carga positiva, pelo que deveríamos falar de catiões de lítio para ser mais precisos. Quando uma célula inicia o processo de descarga – por exemplo, com a moto em movimento – os iões são gerados num dos elétrodos, o ânodo. É então que eles iniciam a deslocação em direção ao elétrodo oposto, o cátodo, passando através de uma membrana permeável – que só eles conseguem fazer, num processo físico chamado de osmose – ‘nadando’ literalmente num fluído, que é um eletrólito (qualquer substância que dissolvida em água produza uma solução condutora de eletricidade). Entretanto, os eletrões ‘arrancados’ no ânodo, dirigem-se também para o cátodo, mas através de um circuito elétrico externo. É este movimento de eletrões que gera a corrente elétrica que pode ser utilizada para mover um motor elétrico.

É então, no cátodo, que se dá a ‘grande festa’ da reunião de cada catião de lítio com o eletrão que haviam perdido, numa espécie de ‘perdoa-me’ à escala atómica. Este estado irá manter-se inalterado até a bateria ser novamente ligada a um carregador, iniciando-se o processo inverso.

Esquema elétrico do funcionamento de uma bateria de iões de lítio. Os catiões e eletrões gerados no ânodo voltam a unir-se no cátodo para formar átomos de lítio, durante o processo de descarga da bateria. A corrente de eletrões que circula por um circuito externo à célula é utilizada para mover, por exemplo, um motor elétrico.

Tal como referi na entrada, o lítio, cujo nome deriva do grego ‘litos’ e que se poderia traduzir como pedrita, pertence ao grupo dos metais alcalinos, que incorporam o sódio ou o potássio, por exemplo, e é o elemento mais leve de todos os metais. Mas é também bastante reativo e agora entendem o porquê de com alguma frequência ouvirmos falar de princípios de incêndio em telemóveis e computadores, mas mais raramente em situações de franca espetacularidade, como o incêndio no ‘paddock’ da Moto-e, em Jerez de la Frontera, ou a queda de uma Boeing 747 de uma conhecida multinacional de logística devido a um incêndio gerado no compartimento de carga. Isto obriga a particular cuidado na construção das células, para evitar a produção de curto-circuitos, mas também de invólucros de proteção que as protejam de danos físicos que originem os referidos curto-circuitos e a sobreaquecimentos excessivos.

O incêndio que destruiu todas as motos da estreante Moto-e, a fórmula destinada à competição de motos elétricas no Mundial de MotoGP, em Jerez de la Frontera, em Março de 2019, foi causado por um curto-circuito. Na altura, o incidente levantou muitas questões sobre a segurança das motos elétricas em caso de acidente e de como combater um incêndio originado nas baterias
.

Enquanto o ânodo é normalmente constituído por elementos ricos em carbono, como a grafite, o lítio que faz parte do cátodo surge normalmente combinado, sob a forma de um óxido. E o parceiro de eleição é o cobalto, que constitui o elemento mais dispendioso da bateria, pelo que muito do trabalho de investigação e desenvolvimento é feito na procura de um elemento que o possa substituir para uma produção em larga escala. Isto porque o cobalto é essencialmente extraído em minas localizadas na República Democrática do Congo, o antigo Zaire, e detidas na sua maioria por empresas chinesas, sendo recorrentes as acusações que pendem sobre estas explorações no campo dos direitos humanos, como por exemplo o trabalho infantil. Obviamente, nenhuma fabricante quer ver o seu nome ligado a tais situações, numa época em que a sustentabilidade e boa governança são palavras base de qualquer gestor, e em que qualquer associação a práticas menos éticas, ou tão simplesmente um escândalo, pode resultar numa queda do valor corporativo, cessação de contratos, exclusão da lista de fornecedores, entre outras consequências mais ou menos negras, já para não falar nos aspetos legais implícitos.


Amostra de cobaltite (um sulfureto de cobalto e arsénio – CoAsS). O metal cujo nome deriva do alemão ‘koboldon’, ou espírito das profundezas, é obtido como subproduto da mineração do cobre e níquel.

Dois candidatos que se perfilam para o lugar do cobalto são o níquel e o manganês, no que provavelmente já terão visto nas baterias com células NMC. O maior fabricante de baterias para a indústria automóvel, a chinesa CATL, já produz em larga escala baterias com uma densidade energética de 240 Wh/kg. A Tesla, pois então, anda mortinha por se ver livre do cobalto, mas não revela os detalhes. A BMW faz mesmo questão de frisar a origem do cobalto das suas baterias, como é o caso de Bou-Azzer, em Marrocos.

A chinesa CATL é uma das maiores fornecedoras de baterias a nível mundial, com soluções para a mobilidade elétrica em duas rodas. A empresa é das que mais tem desenvolvido e produzido baterias de células NMC em maiores quantidades.

Estas economias de escala são importantes, não só em termos de fluxo de fornecimento (mais fontes de origem), como também em termos de custos e volumes de produção. Só isto pode fazer com que – como já se tem assistido e se continuará a ver nessa tendência – os valores de comercialização das baterias baixem. Um valor deveras interessante é revelado pela BloombergNEF, uma consultora de estratégia para a transição para energias alternativas, que indica que o preço do kwh em 2010 rondava os 1.160 dólares norte-americanos. Dentro de três anos, em 2024, essa cifra deverá cair para uns expressivos 100 dólares, menos de um décimo, portanto! E este é um marco importantíssimo, pois nesta altura os veículos elétricos serão mais competitivos que os seus congéneres de motor de combustão.

Este gráfico publicado pela ‘The Economist’ com dados da ‘BloombergNEF’ mostra a evolução do potencial de ionização e como em 2024 o custo do kwh deverá ser inferior a um décimo do verificado em 2010. Por esta altura, os veículos elétricos (EVS) deverão ser mais competitivos que os seus congéneres de motor a combustão.

A questão da maior autonomia, que particularmente nas motos gera a tão asfixiante ‘ansiedade de autonomia’, poderá ver a solução passar pela substituição do eletrólito líquido por outro de fase sólida. A Samsung é uma das empresas que está a explorar a capacidade dos iões de lítio encontrarem ‘túneis’ neste tipo de eletrólitos, que possibilitarão a produção de células mais seguras e detentoras de maior densidade energética. As mesmas recorrem a um cátodo NMC e a um ânodo que combina prata e carbono, enquanto o eletrólito sólido seria à base de argidorite, um nome pouco conhecido do público em geral para designar um mineral que não é mais do que um sulfureto de prata e germânio. Algum material publicado aponta para uma densidade energética na casa dos 900 Wh/litro, o que significa o dobro do verificado para as células convencionais de iões de lítio, pois o grupo de referência indica um valor de 430 Wh/kg. Na prática, imaginem um Tesla Model S a fazer a viagem de Madrid a Lisboa e ainda ter ‘fôlego’ para ir beber um café a Sines com uma carga única das baterias! Ou seja, o horizonte dos 800 quilómetros de autonomia será uma realidade para os quatro rodas, enquanto nas motos poderíamos pensar em autonomias de 300 quilómetros, logo perfeitamente enquadradas com a realidade atual das congéneres de motor térmico.

Exemplo de duas baterias produzidas pela sul-coreana Samsung destinadas à mobilidade elétrica. Uma delas atinge os 94 Ah de capacidade.

Um especialista em baterias da Universidade do Texas, em Austin, Arumugam Manthiram, dizia aos nossos colegas da ‘The Economist’, que as baterias ‘sólidas’ deparam-se com dois problemas principais. Dois sólidos colocados face a face (pensem no contato entre o eletrólito e os eletrodos, por exemplo) apresentam pontos limitados de passagem dos iões. Em contrapartida, o contato entre um líquido e um sólido é contínuo. Uma das formas de dar a volta ao texto seria através de eletrólito polimérico, que é suficientemente flexível para se adaptar a uma superfície sólida, como faz um liquido. Mas aqui surge um problema novo que resulta do fato de não se conhecer um candidato para esse papel.

Arumungam Manthiram, especialista em baterias da Universidade do Texas.

O segundo óbice reside na produção. Há muitos anos de experiência e capital investido na tecnologia do lítio como hoje a conhecemos. A aparentemente simples mudança para um eletrólito sólido irá traduzir-se num investimento colossal em novas linhas e métodos de produção, ou seja, em fábricas que terão de ser erigidas a partir do zero. Um caminho intermédio passa pelo desenvolvimento de melhores eletrólitos líquidos e elétrodos compatíveis, definitivamente o trajeto que deverá ser trilhado para se obterem baterias à base de lítio mais seguras e mais potentes.

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