Se a necessidade aguça o engenho, como diz o ditado, a Niassa é uma prova viva da sabedoria popular. Mas ali para os lados do Lago Niassa, na província moçambicana com o mesmo nome, é Júlio Eugénio Ulaia, aliás ‘Mister Contrálio’ que dá mostras de uma criatividade sem limites. E logo numa altura em que o tema da sustentabilidade e da economia circular anda nas bocas do mundo.
- Texto: Fernando Pedrinho
No final da minha passagem por Moçambique, lembro-me de falar com alguns amigos do inventor da moto de madeira do Niassa. Como andava mais por Tete, nunca tive oportunidade de subir ao Niassa e encontrar este génio moçambicano que residia no posto administrativo de Maniamba, no distrito de lago, a cerca de 85 quilómetros da capital provincial, Lichinga ( a antiga Vila Cabral).
Em terra de agricultores, ‘Mister Contrálio’ cedo mostrou os seus dotes de engenheiro em potência. Aos 21 anos construiu uma bicicleta com uma quadro de madeira cortada nas matas, para se deslocar para a escola. Os amigos deram-lhe as rodas e a corrente. Mas acabada a via útil da bici, veio então a primeira grande obra de engenharia.
Um ‘carro’ de nove lugares
Recorrendo a chapas de zinco e um chassis feito de madeira, ‘Contrálio’ utilizou um motor de motocicleta e um bidão de vinte litros como depósito de combustível. As peças sobressalentes não eram problema, pois se partissem logo eram reconstruídas (ou fabricadas) na hora, como sucedia com a alavanca das mudanças, feita de madeira.
Com nove lugares e capacidade de carga, Ulaia utilizava o seu veículo para transportar a produção agrícola que os pais plantavam na machamba da família, ou para ir para escola com os amigos. Para mostrar a precariedade com que se vive nalgumas zonas do norte de Moçambique, o bom do Júlio viu-se forçado a encostar o seu bólide ao fim de três anos, alegadamente por não conseguir obter peças para a manutenção do motor.
Niassa, a moto de madeira
Já perto dos 25 anos de idade, construiu um quadro e – no que normalmente são peças de plástico – restante componentes, como a carenagem, guarda lamas e guiador, com madeira. Só as rodas, motor, escape, cablagem, corrente, buzina, retrovisores e iluminação não tiveram a mesma origem natural. A Niassa, de seu nome, é surpreendentemente bem proporcionada, numa espécie de ‘crossover’ com motorização chinesa.
E o mais surpreendente, é que Júlio Eugénio até construiu o capacete com aquele material reciclável, Enquanto por dentro, forrou-o com o que aparenta ser espuma revestida por tecido.
Mais recentemente, o moçambicano evoluiu o projeto (o mesmo não se podendo dizer a nível estético) modificando um bidão de vinte litros para servir de assento para condutor e passageiro. Já o reservatório de combustível nasceu do improviso, a partir de uma garrafa de litro e meio de água mineral. Isso dá-lhe para percorrer os 40 quilómetros que separam a sua Maniamba da vila municipal de Metangula.
‘Contrálio’ acabou por ‘carenar’ todas as superfícies, não deixando ‘ponta’ de madeira à vista. A Niassa passou a vestir de branco, exibindo a azul, nos flancos dianteiros, a alcunha do seu criador.
O sonho de estudar engenharia mecânica
Como dizia ao jornal moçambicano Notícias, “o meu sonho era ter uma daquelas motorizadas que aparecem nos filmes, e, como tenho noções, acabei montando. Afinal, prefiro usar componentes disponíveis na zona por ser mais económico. Se acaso, o pau que compõe o guiador cair ou partir-se, facilmente entro nas matas e corto um novo”, contou Júlio Eugénio.
O seu sonho era poder estudar numa instituição de ensino superior ou ingressar num curso técnico profissional. Como revelou aos nossos colegas do Notícias, “gostaria de estudar e porque a minha família não tem dinheiro. Com toda a certeza, uma bolsa de estudo iria fazer grande diferença na minha vida. Sinto que preciso aprofundar os meus conhecimentos na área em que tenho vindo a trabalhar”, acrescentou.
Oxalá ‘Mr. Contrálio’ possa realizar o seu sonho!