Mundial de Motocrosse: Porque não há portugueses?

Foi a 4.ª prova do Mundial de Motocrosse e, apenas por ser em Portugal, contou com a presença de pilotos portugueses nas duas categorias. Longe, cada vez mais longe, vão os tempos em que tínhamos representantes nas equipas oficiais e a ganhar provas! O que é necessário fazer para voltar a ver a Bandeira Nacional nas pistas de MXGP? Fomos falar com quem sabe…

  • Texto: Paulo Ribeiro
  • Fotos: Luís Duarte e P.R.

O Crossódromo do Casarão teve uma boa casa. O público respondeu em massa ao regresso da caravana mundialista e proporcionou ao Águeda Action Club (ACTIB) uma boa bilheteira. Ainda assim não foi casa cheia e o maior motivo deve-se à ausência de um nome lusitano capaz de mover multidões. Claro que, com um português a tempo inteiro, o entusiasmo seria outro, conferindo um colorido mais forte à bem renovada e cada vez mais espetacular pista de Águeda. Mas, havendo uma paixão de longa data pela modalidade, o que falta afinal para termos de novo um piloto ao mais alto nível?

A estreia mundialista de Luís Outeiro

É certo que havia um nome de pronúncia bem portuguesa entre os (apenas) 26 crossistas da categoria mais importante, a de MXGP. Luís Outeiro aceitou o convite/desafio da Federação de Motociclismo de Portugal e apresentou-se em Águeda disposto a lutar contra Gajser, Prado, Renaux, Seewer, Goldenhoff e outros que tal. Uma lista de luxo (mesmo sem os lesionados Jeffrey Herlings, Romain Febvre e Alessandro Lupino ou o reformado Antonio Cairoli, que andava pelo paddock nas suas novas funções) que reforçava a vontade de terminar nos lugares pontuáveis.

Para o campeão nacional em título da categoria Elite e bi-campeão de MX2, a estreia mundialista “aconteceu porque a prova é em Portugal e, recebendo o convite da FMP não poderia falhar a corrida de casa. Esta será a única prova deste campeonato porque o GP de Espanha, apesar de ser perto (ndr: pouco mais de 500 km de Águeda e um pouco menos desde Alqueidão), tem data coincidente com uma corrida em Portugal (29 de maio, em Fernão Joanes). O que é pena porque seria uma boa oportunidade para aprender mais e ganhar ritmo”. Assim, ficou-se pela corrida aguedense onde esteve perto de cumprir o objetivo maior de “marcar pontos”. Andou nos lugares pontuáveis nas duas mangas e por lá perto terminou, em 21.º na mesma volta do vencedor da primeira manga, Jorge Prado, e em 23.º na seguinte ganha por Tim Gajser.

O jovem ribatejano não esconde que “gostava muito de fazer todo o Mundial, mas é muito caro e os apoios não são muitos. Mesmo esta corrida (Águeda) tem algumas despesas adicionais, mas, como é no nosso País e a FMP tem direito a um ‘wild-card’, não podia desperdiçar a oportunidade”.

40 mil euros por ano… só para o Europeu

Alinhar a tempo inteiro no Mundial MXGP “é um sonho, mas que envolve alguns euros, é mesmo muito caro fazer toda a época mas os apoios não são muitos”. Mas será que é só uma questão de dinheiro que determina a ausência de portugueses no Mundial? Luís Outeiro acredita que sim e dá o seu próprio exemplo garantindo que só não se atira à mais importante competição da modalidade “por falta de orçamento, já que, infelizmente não há muitas empresas a investir no Motocrosse. E não é só em Portugal. Em todo o lado, os pilotos têm sempre que meter dinheiro para correr. E um Mundial deve ser caríssimo. Em 2021 para fazer o Europeu pediram-me 40 mil euros” sublinha.

À espera de uma oportunidade, o piloto da Yamaha MotosVR, explica que “infelizmente, o motocrosse já não é como antigamente onde o nível de pilotagem, o andamento, ajudavam bastante e tinham uma maior importância. Agora é o dinheiro que conta muito e cada vez mais. Para se chegar a um determinado nível é preciso investir muito. As coisas evoluíram de uma forma em que houve uma alteração importante a esse nível, mas continua a ser extremamente importante o trabalho. Nada se faz sem trabalho.

No passado houve portugueses que conseguiram estar de forma assídua no Mundial e até ser pilotos oficiais, atingindo um nível muito elevado porque trabalharam para isso e souberam aproveitar as oportunidades que surgiram. Se poderia brilhar caso surgissem apoios suficientes? Tal como tivemos o Rui Gonçalves a fazer todo o Mundial e a andar muito bem, se tivesse essa oportunidade tentaria andar o melhor possível e conseguir os melhores resultados, mesmo se para isso tivesse de treinar ainda mais e fazer mais sacrifícios”.

É imprescindível fazer bem os trabalhos de casa

Exemplo para as gerações mais recentes, Rui Gonçalves competiu durante 17 épocas consecutivas no Campeonato do Mundo de Motocrosse, sendo vice-campeão de MX2 em 2009. Ano em que se estreou nas vitórias nas areias holandesas de Valkenswaard, tornou-se o primeiro português a vencer em Águeda e triunfou ainda em Kegums (Letónia) e Uddevalla (Suécia).

Carreira de sucesso que, infelizmente, continua sem sucessores. “É pena que depois da saída do Mundial, do fim da minha carreira no Motocrosse, não tenha aparecido mais nenhum piloto português o que, é obvio, todos queremos que aconteça. A competitividade é, como sempre foi a este nível, extremamente elevada, com uma evolução enorme em todos os campos, e por isso é preciso, cada vez mais, tentar fazer corridas internacionais. Claro que compreendo que os custos são enormes para quem está apenas a fazer o campeonato nacional e tem que sair para fazer corridas em Espanha, num campeonato muito mais competitivo do que o nosso, ou no Europeu”.

Reconhecendo ser uma pergunta bastante complicada, o transmontano acredita que passa pela competição no estrangeiro, em corridas mais aguerridas, com mais adversários, a possibilidade de voltarmos a ter um piloto a tempo inteiro no Mundial. E recorda as aventuras, quando com o pai e por vezes na companhia de Joaquim Rodrigues Jr. arrancavam juntos “para fazer corridas do Campeonato de Espanha ou do Europeu, estágios e vários treinos para juntos, evoluirmos e encontrar soluções e, pouco a pouco, ir melhorando. Claro que para ficar, mesmo depois de tudo isto, não é fácil até porque há muitos pilotos de todo o Mundo com os mesmos objetivos, na mesma situação, porque este não é um exclusivo dos portugueses. Até porque são muito poucas equipas para um leque tão grande de pilotos e é difícil encontrar lugar para todos”.

Começar a lutar em corridas competitivas

Mas será só a falta de dinheiro a impedir os portugueses de voar mais alto? Rui Gonçalves responde: “É obvio que a parte financeira tem um peso muito grande até porque, se não houver essa componente, podemos desde logo abandonar o logo o sonho de estar no Campeonato do Mundo a tempo inteiro. No entanto é possível começar por tentar ser competitivo em campeonatos fortes interessantes. Incluindo o Europeu ou mesmo corridas em Espanha onde vários pilotos do Mundial marcam presença regular. Aí os custos diminuiriam de forma importante”.

Mas, continua o piloto que agora defende as cores da Sherco nos Rali-Raides, “o mais importante mesmo é o treino durante a semana. Não há milagres e as corridas não se ganham no fim de semana. É durante a semana que se ganham as corridas, com treino físico, treino com moto e muita preparação a todos os níveis. É aí que tem de estar o empenho e a dedicação de cada piloto, com os objetivos bem definidos para que consiga atingi-los”.

‘Eles’ não são diferentes de ‘nós’

Independentemente das dificuldades, ainda que acrescidas pela distância que nos separa do centro da Europa e da dimensão do mercado, RG999 acredita que Portugal pode voltar a ter um representante a tempo inteiro. “Portugal tem grandes atletas em todas as modalidades, seja no Motocrosse, como no Enduro, nos Ralis e até na velocidade. Ou seja, eles não são diferentes de nós, agora acredito que o país onde nasceram e a importância e influência de cada mercado tenho um peso muito importante na indústria das motos e, por consequência, em alguma facilidade no momento de abrir portas ao mais alto nível!

Mas que ninguém fique sentado à espera das oportunidades caídas do céu! “Tudo passa pelo trabalho de casa, pelo treino físico, diariamente, para tentar evoluir e ter sempre a ambição que permita sonhar e acreditar. E ter capacidade de sofrer, porque hoje em dia não podemos pensar que vamos andar de motos apenas para nos divertir. No Motocrosse é preciso sofrer, é preciso privar-se de muita coisa, da família, dos amigos, para ir atrás do sonho”.

Rui Gonçalves deixa claro que em Portugal “temos muitos pilotos com qualidade tremenda para conseguir fazer a diferença. No entanto, isto é um autêntico puzzle, com muitas pecinhas, que têm de estar todas no sítio certo para ver a imagem no seu todo. Esse tem que ser o ponto de partida para que, mais tarde ou mais cedo, possamos ter alguém a representar a nossa Bandeira que, neste momento, tanta falta faz neste campeonato do Mundo”.

Da loucura de outrora ao profissionalismo de hoje

Quem já fez ondular a bandeira portuguesa nos circuitos mundiais foi Joaquim Rodrigues Jr. que aponta a economia como um dos problemas para a ausência de lusitanos do MXGP. Talvez o mais significativo, é certo, que não o único.

Até porque, esclarece, “o atual modelo de motocrosse é muito diferente do que era quando corrida. Era preciso uma boa dose de loucura (e ainda bem que o meu pai foi suficientemente maluco…) para nos metermos na carrinha e atravessar a Europa até aos palcos do Mundial e tentar a nossa sorte. Lutávamos pelo apuramento que vali 1000 francos suíços e que já dava para o gasóleo… Nessa altura era possível fazer isso, tentar a sorte mas os tempos são muito diferentes. Existe um enorme profissionalismo a todos os níveis e mesmo antes de sair de casa já se gastou uma fortuna e quando se chega às pistas ganha-se… zero. Claro que isso complica muito a vida a quem tem ambições de correr lá fora, de perseguir o sonho internacional”.

Falta uma base mais ampla de seleção

Piloto oficial Honda em 2001, ao lado do bi-campeão Mundial de Motocrosse Frederic Bolley, JRod conheceu uma realidade bem diferente nos Estados Unidos onde foi o único português a correr nos ultracompetitivos campeonatos AMA de Supercrosse e Motocrosse. “Sem uma base de formação, sem um grande número de pilotos, não é possível criar competitividade e uma seleção natural de valores. E está cada vez mais difícil um pai pegar no miúdo e começar a levá-lo para as pistas. Tudo é mais caro, mais complexo e começa a notar-se uma falta de paixão para correr esses riscos, para vencer as adversidades”.

São muitas as diferenças para as décadas de 1980 e ‘90 onde “o motocrosse era um hobby, uma paixão, enquanto hoje começa por ser profissional desde muito cedo. E é preciso não esquecer que vivemos em Portugal onde o motocrosse não tem qualquer relevância pública. Vale zero em termos acompanhamento público e, naturalmente, de investimentos de empresas fora do setor. Claro está que, para quem quer sair, tudo é ainda mais complicado”.

Os tempos são diferentes, é certo, e por isso há que adaptar-se às novas realidades. “Por exemplo, os patrocínios têm que deixar de ser vistos como um apoio das empresas de amigos para funcionar como verdadeiras parcerias. Se um dá o dinheiro, o outro tem que defender e promover a imagem. E isso não se faz apenas com uns autocolantes na moto. Não se trata de uma falta de profissionalismo ou comprometimento por parte dos pilotos. Falta, isso sim, o desporto ser verdadeiramente profissional. Só assim será possível a um português regressar ao Mundial”.

O exemplo da MXGP Academy

Particularmente atento a esta questão, Manuel Marinheiro marcou presença em Águeda não só para a homenagem ao grande piloto de motocrosse que foi Paulo Gonçalves, como para acompanhar de perto aquele que é um dos projetos mais interessantes na área da formação crossista.

Para o presidente da Federação de Motociclismo de Portugal, “é necessário que todos tenham a consciência de que esta é uma modalidade particularmente exigente e é necessário que os jovens pilotos que ambicionam seguir as pisadas de Rui Gonçalves, Paulo Gonçalves, Joaquim Rodrigues, Ruben Faria e outros pilotos de topo que é necessário sacrifícios desde tenra idade. E depois há que ter a consciência de que não é possível comparar a realidade portuguesa com a espanhola, já que, apesar de batermos a cada ano recordes no número de licenças desportivas a verdade é que temos 1300 pilotos contra as dezenas de milhar que existem aqui ao lado. Ou seja, logo à partida existe uma enorme discrepância quanto à base de recrutamento como muito diferentes são as possibilidades de apoio”.

Numa aposta na formação e crescimento sustentado da modalidade, a FMP tem apoiado a MXGP Academy, organizada pela FIM e pela Infront, promotor do Mundial, e que voltou a marcar presença em Águeda. Foram 13 os jovens pilotos, mas também pais, treinadores e representantes federativos envolvidos na modalidade, a escutar atentamente os experientes conselhos de 3 técnicos holandeses. Várias sessões de formação teórica, prática e palestras, bem como seminários e reuniões com os pais, que procuram ajudar a perseguir o sonho de chegar ao Mundial de Motocrosse. No segundo dos oito ‘campus’ previstos ao longo do campeonato de 2022, estiveram também os treinadores que trabalham diretamente com a FMP para reforçar valores e métodos de trabalho.

Chegar ao topo exige muitos sacrifícios

 “Sempre com a consciência de que é necessário muito trabalho porque não se chega ao topo de forma fácil e cómoda”, Manuel Marinheiro recorda que “a Federação tem tentado apoiar naquilo que é possível, nomeadamente nos campeonatos de Espanha e da Europa”. Para voltarmos a ter um piloto no topo da modalidade “é preciso continuar a trabalhar, muito e forma metódica, acreditando que é possível lá chegar. A FMP acredita e, por isso, continuará a apostar nestes jovens valores. Sempre sublinhando que é preciso muito sacrifício o que é bem comprovado por todos os pilotos portugueses que estiveram no Campeonato do Mundo, conhecendo todos a sua valia e o que tiveram de fazer para lá chegar”.

O exemplo da MXGP Academy tem-se realizado sempre que o Mundial visita Portugal mas, convém realçar que “é algo que não tem continuidade. É uma iniciativa pontual que, só por si, não vai levar os jovens pilotos até ao mais alto nível. Por isso a FMP tem a sua escola com treinadores que estão a ser preparados num processo evolutivo que passa pela presença em outras ações desta academia para aprender o mais possível sobre todos os aspetos que envolvem os pilotos e a modalidade”.

No entanto há algo que o responsável máximo da entidade federativa procura deixar bem claro: “É indispensável formação e muito trabalho, mas não só dos pais, treinadores ou da federação. É o piloto que, em primeiro lugar tem que focar-se no que são os seus objetivos, as suas metas a médio e longo prazo e depois, com a sua entrega e apoio de todos os envolvidos, ir ultrapassando as várias barreiras que forem surgindo”. E nunca serão poucos os obstáculos para voltarmos a ter um português ao topo do motocrosse mundial.

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