Já foi oficial e cavalheiro. Correu com os luxos de uma equipa de fábrica, mas também despojado de qualquer apoio externo. Mas está pronto para ‘eletrificar’ o seu futuro no Rali Dakar. Mário Patrão foi o melhor português na edição 2023 e foi o primeiro a utilizar uma elétrica nas provas de todo-o-terreno em Portugal. Será que pode juntar as duas mais recentes vertentes da longa e profícua carreira desportiva? Para já vai arrancar a temporada elétrica na prova extra do Regional de Motocrosse, no domingo, em Tarouca.
- Texto: Paulo Ribeiro
- Fotos: Paulo Ribeiro e equipas
Ao lado da KTM Freeride E-XC, com a serra da Estrela como pano de fundo, Mário Patrão não esconde o ceticismo com que acolheu o desafio elétrico. “Inicialmente, quando foi proposta essa ideia, reconheço que fiquei um pouco apreensivo. As motos ainda não estão evoluídas de tal forma para competir face aos modelos com motor a combustão. Estão ainda um pouco atrás em termos de competitividade”.
No entanto, e como sempre ao longo da carreira, o cuidado colocado na relação com os patrocinadores e a partilha de ideias levou o desafio avante. Afinal, “porque não apostar numa coisa diferente, numa coisa nova, depois de mais de 20 títulos nacionais e mais de duas décadas de competição? Algo que é, a todos os títulos, uma importante mais-valia e que poderá contribuir para melhorar algo no futuro, em termos de meio ambiente”.
Uma aposta inovadora e ecológica
Um projeto inserido na vincada política de sustentabilidade ambiental de alguns sponsors, nomeadamente do Crédito Agrícola, que gerou “um resultado superpositivo. Os patrocinadores ficaram muito satisfeitos e fomos pioneiros a fazer corridas em Portugal com uma moto elétrica. Claro que a moto não é muito competitiva em termos absolutos, mas mostramos que é possível competir com uma moto elétrica. E conseguimos o objetivo principal de passar a imagem de que a moto é divertida e que a diversão nas corridas é possível com aquela moto”.
Além disso, acrescenta, “é mais económica do que uma moto a combustão e polui menos. Conseguimos vários triunfos na transmissão da mensagem. E se no ano passado foram 8 corridas, este ano, iremos fazer mais algumas provas com esta moto, sempre limitados pela autonomia. Fizemos alguns enduros, mas nos raides a autonomia é ainda demasiado limitativa”.
Um projeto com futuro que passa pela “evolução e consolidação, esperando que seja lançada uma moto mais potente e com mais autonomia” E mesmo se Mário Patrão não faz ideia de “quando poderá ser lançada” garante que “parte do futuro passará seguramente pelas motos elétricas”. Incluindo no Rali Dakar?
Os rumores não são de agora e as novas formas de motorização vão ganhando destaque a cada edição da prova que percorre, agora, as areias sauditas. Camiões a hidrogénio, carros com biocombustíveis ou motores elétricos são já uma realidade… ainda que experimental. E nas motos já se fala da possibilidade de surgirem versões elétricas à partida em 2024…
Dakar de elétrica? Porque não!
Mário Patrão já ouviu falar desse projeto, mas reconhece “que se afigura muito difícil”. Sem querer dizer que seja impossível, frisa que “o Dakar é uma prova muito grande, são precisos muitos testes e falta saber se haverá tempo para cumprir todo um intenso programa de desenvolvimento. Uma coisa é certa: a curto prazo haverá motos elétricas no Dakar!“ E esse poderá ser um dos próximos desafios do senense. “Imagino-me a fazer o Dakar com uma elétrica, se vir que é uma mais-valia e que é uma moto que me pode levar a lutar por boas posições”.
Uma chegada da eletrificação à prova sonhada por Thierry Sabine que poderá ditar várias alterações no perfil das etapas. “Claro que, para fazer qualquer alteração deste calibre, será necessário ajustar os regulamentos. Não se pode exigir que uma moto elétrica faça etapas de 1000 km quando tem autonomia para 250 km. Claro que não é possível!” Por isso, defende, “tem de haver um ajuste dos regulamentos. As organizações têm de ajustar as provas e trabalhar nesse sentido para ver se é possível fazer e se vale a pena ou não”.
‘Original’ até ao triunfo
Mas não será a autonomia limitada capaz de subverter o verdadeiro espírito do Dakar? Ou seja, a capacidade de resistência de pilotos e máquinas. O desafio das longas etapas nos ambientes mais inóspitos. A reposta surge pronta. “Claro que esse é um problema a enfrentar. Mas este ano também houve uma ou duas etapas com muitos problemas de autonomia de gasolina. No entanto, se for feita uma classe própria para motos elétricas no Dakar, com máquinas equivalentes, uma classe própria e exclusiva, não retira o espírito. Isto é, seria uma categoria Elétrica como há os Elite, os Rali2, os ‘malle-moto’, ou os quads. Nesse sentido, e com uma classe própria, seria uma competição tão interessante como as outras. Mas é preciso olhar para o regulamento e para a autonomia das motos para que elas consigam fazer todas as etapas que se propõem”.
Neste ponto da conversa com Mário Patrão, o rumo tinha de mudar. Como se procurássemos um novo ‘way-point’ na aventura. Havia que saber o porquê da opção pela categoria Original by Motul, aquela onde os pilotos são, também, mecânicos, assistentes e confidentes em causa própria. “Depois de ter feito ‘sozinho’ com a Suzuki, de integrar uma equipa oficial (da KTM entre 2016 e 2020) havia que buscar uma motivação acrescida para estar presente no Dakar”.
O gosto e a experiência com a mecânica foram assim uma espécie de desbloqueadores de conversa. “Além de que, as 4 ou 5 horas que eram gastas a pintar o ‘road-book’, podiam ser dedicadas à mecânica, agora que estes são entregues apenas uns minutos antes da partida de cada etapa. Assim pareceu ser uma boa alternativa, juntando várias condicionantes: Tinha tempo, gosto pela mecânica e confiança no trabalho próprio”.
Mário Patrão e as questões económicas
E a questão económica? “Também foi um fator muito importante. Até porque gasta-se muito menos, cerca de 25 a 30 por cento, do que levando uma equipa de assistência. Com um budget recheado é uma coisa, mas não tendo o bolo completo claro que a motivação económica ganha outro peso”.
Mas, que fique bem claro, “a maior motivação foi mesmo o gozo de fazer as coisas, de não estar dependente de ninguém, acreditando que teria tempo suficiente para tratar das coisas todas. Mesmo se 2023 foi um ano mais complicado, com mais tempo gasto nas especiais e nas ligações e menos tempo para a parte mecânica. Mas em condições normais, como em 2022, houve mais do que tempo para fazer a mecânica”.
Heróis são os bombeiros!
Problemas acrescidos em 2023 por força das inesperadas e duríssimas condições meteorológicas que em nada ajudaram. “Além dos problemas com água na gasolina ou na embraiagem, no último dia, devido à lama, surgiram outros contratempos. A moto já tinha dois anos e saturação em algum material, pelo que deu mais trabalho do que quando era nova. E o veio da escora, por exemplo, acabou por partir por duas vezes…”
Talvez por isso Mário Patrão não descarte a possibilidade de adquirir uma moto nova para voltar a competir na categoria Original by Motul. O objetivo também já está delineado. “A ideia passa, naturalmente, por lutar pela vitória, depois do 6.º lugar na estreia e do 3.º este ano. Mas tudo vai depender das regras, que estão sempre a ser alteradas e exigem muita atenção”.
Uma categoria que exige ‘trabalhos forçados’, mas a que Mário Patrão rejeita colar o epíteto de herói. “De forma alguma. Sou apenas mais um piloto, perfeitamente normal, apenas com uma capacidade acrescida de resolver os problemas mecânicos. É certo que estou muito à vontade nesse campo, mas não me sinto mais do que qualquer outro piloto… Agora se disserem que descansamos menos que os outros, claro! E é mais desgastante, porque não ninguém para montar a tenda ou ajudar a arrumar as coisas. É tudo muito individual. E, curiosamente, o dia que mais descansei foi na etapa maratona, porque o tempo para mexer na moto era limitado a uma hora para mexer na moto. Depois foi descansar. Mas não é por isso que sou herói. Heróis só na banda desenhada. Ou os bombeiros que ano após ano, combatem os incêndios. Esses sim, são verdadeiros heróis!”
Mário Patrão e um ambiente diferente
Mas, nem assim, o piloto de Paranhos da Beira mostra saudades de ser piloto ‘oficial’, de ter uma autocaravana para descansar ou mecânicos para tratar da moto… “A única coisa de que se sente falta é o facto de ter uma equipa por trás, a apoiar, a perguntar se está tudo bem, como correram as coisas se é preciso alguma coisa… É mais o fator humano. Nesta categoria estamos sozinhos! Independentes, mas sós.” Algo que, ao contrário do que seria de supor, não gerou qualquer ‘solidão competitiva’. “Apesar de saber que estamos sozinhos, responsáveis por todos os detalhes e que tudo tem de ser gerido de forma autónoma…”
Fatores que contribuem para um ambiente único naquela parte do acampamento, onde as tendas e as malas com peças e ferramentas são iguais para todos. “Ali, ajuda-se e é-se ajudado. Se alguém pede uma opinião ou uma ajuda, todos contribuem. Aliás, este ano aconteceu uma situação, quando partiu a escora e foi preciso ajuda para levantar e segurar a moto. Como estava um pouco magoado nesse dia, houve outros pilotos que logo se prontificaram a ajudar. Esta é uma classe muito interessante e os pilotos dão-se todos bem. O espírito de solidariedade afasta um pouco essa solidão. E sabem que estão todos no mesmo patamar pelo que se for preciso uma chave, a única hipótese é pedir emprestada a um companheiro”.
Piloto, mecânico e… gestor
Ainda assim, atendendo à limitação de peças sobressalentes e do tempo para cuidar da moto no final de cada dia, há que fazer uma gestão mais cuidada na condução. “É necessário mais cuidado para evitar estragar a moto ou aumentar o desgaste de alguns componentes. Claro que, quanto mais se destrói a moto, mais trabalho há no final do dia. Além de que as peças são sempre algo curtas em tão pouco espaço e é impossível levar todas as que poderemos precisar numa mala de 80 litros”.
Uma aposta ousada, a remeter para os primórdios do Rali Dakar, quando os pilotos eram os próprios mecânicos, diretores desportivos e gestores, que Mário Patrão vive na plenitude. E passam-lhe completamente ao lado as críticas de se inscrever como ‘malle-moto’ para não ter a responsabilidade de resultados. “É algo de tão descabido que nem vale a pena… O palmarés que conquistei fala por si! Importante mesmo para uma tomada de decisão destas, é perceber qual o caminho a fazer enquanto piloto e aquilo que os patrocinadores procuram”.
“Depois de fazer o Dakar por 9 vezes, de ter terminado no top-15 e ter ganho a classe Maratona, de já ter regressado magoado ou de ter-me lesionado antes de ir, é necessário perceber o que mais importa. É importante andar nos 20 primeiros e à quarta etapa vir para casa? Ou é importante ficar nos 25 primeiros tendo de arriscar um pouco mais todos os dias? E aumentando o risco de sofrer uma queda ou ter problemas… Por isso há que perceber o que os patrocinadores querem, o que desejas enquanto piloto e que o físico te diz”.
Ganhar com Gonçalves no coração
Agora, “com a experiência acumulada”, é possível fazer essa avaliação antes de partir, levando claros os objetivos. “As metas vão predefinidas e tenho isso sempre em mente mesmo sabendo que as coisas podem correr mal”.
Para 2023, a aposta passava por lutar pelo pódio, o que foi conseguido, acrescentando a sempre importante sensação de vencer uma etapa. E logo numa data com um significado tão especial… Para Mário Patrão “uma vitória é sempre uma vitória. mas, acontecer no dia em que fazia 3 anos que o Paulo Gonçalves faleceu dá outro peso, outra importância a essa vitória. Claro que o dia 12 de janeiro será inesquecível por mais anos que vivamos e lembrei-me bem do significado da data antes da partida para esse dia. E não há uma etapa que faça, por mais que queira, sem recordar o que aconteceu ao Paulo. Pode ser um trauma, pode ser uma defesa… não sei explicar. Mas numa etapa grande é impossível não pensar naquilo que pode acontecer e que, infelizmente, aconteceu a um amigo nosso”.
Recordações que não precisam de qualquer ‘gatilho’ especial para serem despoletadas. Nem é preciso apanhar um susto… “É uma recordação que está sempre presente, quando estou a andar. Pode ser um travão para autodefesa e lembro-me muitas vezes, nas corridas em Portugal, mas muito mais nas corridas lá fora”. E 12 de janeiro, na 11.ª etapa, entre Shaybah e o Empty Quarter, foi mais um desses dias, mas coroado de forma diferente.
Lutar pelos sonhos, sem nunca desistir
“No final, ao saber que tinha ganho, fiquei muito feliz pelo Paulo. Sei que iria ficar muito feliz pelo resultado. Mas foi uma sensação estranha, difícil. Com diversas emoções ao longo do dia. Foi uma boa corrida, mas houve uma ajuda especial. Numa etapa grande apanhamos sempre sustos, daqueles em que pensamos que ‘já fomos’… E por vezes pensamos, ‘ufa, ainda foi desta’. Parece que há alguém que nos segura. Este ano sofri uma queda logo no primeiro dia e andei todo o Dakar com dores na clavícula sofrendo a cada buraco ou duna cortada…”
“Nesse dia levei um daqueles esticões que fazem ver estrelas. E não sei como a moto se segurou depois de perder completamente a traseira e saltar duas ou três vezes. Por uma questão de mera sorte, nada mais, não caí. Apanhei alguns sustos, sofri mais, mas felizmente não caí nem baixei os braços. Por isso sei que ele ficou feliz, onde quer que esteja. Era assim que ela queria que as coisas acontecessem. Tens de lutar por aquilo que queres, não desistir nem baixar os braços. Como nós sabemos o que o Paulo era…”
Reforma adiada… enquanto o físico deixar
Uma homenagem que Mário Patrão gostaria de reforçar com um triunfo no Dakar. Mas, aos 46 anos, é tempo de começar a pensar na reforma? Enquanto lança o olhar para a ‘sua’ Estrela, a serra que lhe moldou o espírito de sacrifício e perseverança não esconde um sorriso genuíno. Garante que não estabeleceu nenhuma meta para pendurar o capacete, mas realça a importância de dois pontos decisivos nessa tomada de decisão. “O físico. Ter condições para treinar, o corpo deixar, não haver nenhuma lesão que seja impeditiva de fazer o que gosto”.
“E, claro, os patrocinadores. Sem essas duas coisas não irei competir. Aí, terei de ponderar e talvez parar para me dedicar a outras coisas. À loja e oficina, ao ensino de pilotagem, passeios pela serra…” Mas, claro, sempre ligado às motos. Afinal, remata, “é uma paixão desde miúdo, que me deixa super feliz pela sorte de fazer o que mais gosto. Andar de moto e criar condições para todos poderem andar numa pista própria, gerir a loja, a oficina, a empresa de passeios… São coisas que me acrescentam e dão muito prazer”.