É das mais antigas corridas de feira e, sem dúvida, a mais famosa da atualidade. O circuito urbano utiliza as ruas da lousadense vila de Torno para um evento único. Acontece anualmente a 15 de agosto, no último dos três dias das festividades em honra de Nossa Senhora da Aparecida. A adesão, essa é enorme e a festa não fica atrás da loucura de Jerez de La Frontera.
- Texto e fotos: Paulo Ribeiro
O cheiro à mistura de gasolina e óleo e o zumbido dos pequenos motores a 2 Tempos serve de entusiasmante elixir para a turba que se amontoa nas ruas do pequeno lugar de Torno. A multidão acotovela-se para ver passar os heróis do Grande Prémio da Aparecida a um palmo do nariz. Literalmente… Até porque, mesmo se o traçado abandonou os tradicionais e irregulares paralelos em prol do mais liso asfalto e trocou as cordas por grades de segurança, a excitação mantém-se. Única, difícil de controlar, como todas as paixões. Sobretudo depois de dois anos exilados por força de uma ameaça microscópica à escala mundial. A pandemia quebrou rotinas, ditou cancelamentos e adiamentos sem fim. Mas não esmoreceu o desejo irreprimível de assistir a um espetáculo sem paralelo.
Sentimento reforçado pelo quase meio século de corridas e pelos quase 200 anos que leva de existência a romaria criada, como todas, por uma lenda. A de um velho ermitão que, desaparecido durante anos, foi encontrado na mesma gruta onde se abrigava, enterrado ao lado de um oratório com a figura de Nossa Senhora da Conceição. Que, a partir daí, ficou como a da Aparecida. A devoção, a fé que salvou milhares, fizeram o resto. Já lá vão 199 anos!
A corrida mais louca do Mundo
A estrela no alto dos 25,52 metros do Andor Grande, cuja tonelada e meia de madeira, alfinetes e cetim é transportada por mais de 80 homens que o Guiness Book of Records já registou como o maior do Mundo, serve de farol e proteção divina. Que bem precisa é!
A freguesia de Torno, umas das atuais 15 freguesias de Lousada (eram 25), transfigura-se por completo a meio de agosto para a Grande Romaria. Que, desde 1823, atrai forasteiros de todo o País. E dizer de todo o Mundo nem sequer é exagero. Basta abrir os ouvidos à miscelânea linguística de emigrantes, imigrantes e outros migrantes para perceber a salada russa em que se transforma o pacato lugar, com população que facilmente multiplica por 20 ou 30 os pouco mais de 2500 residentes a tempo inteiro.
Internacionalização que reforça prosaico estatuto do GP da Aparecida, a corrida mais louca do Mundo ou, pelo menos, uma das mais alucinantes à face da Terra. Exagero? Nem por isso. Senão, basta atentar no seguinte. A Ilha de Man, Macau ou outros circuitos de montanha ou citadinos são perigosos, ninguém duvida. Mesmo se as organizações tentam mitigar os riscos com limitações de acesso, barreiras de proteção, rails e fardos de palha. Mas, na Aparecida, a paixão pelas corridas sempre foi acompanhada de boa dose de inconsciência. O público sempre acreditou na mestria dos pilotos e na proteção divina, achando que o simples cordel que delimitava a pista era suficiente para evitar o acidente.
Paixão com proteção divina
Segurança que está ao mesmo nível das corridas de feira que, na segunda metade do século passado, levavam animação acrescida a Bragança ou Oliveira de Azeméis, a Valpaços ou Santa Isabel, Águeda e Chaves, Vila Meã ou Cascais, Felgueiras ou Viseu. Além das mais famosas e pontuáveis para o Campeonato Nacional de Velocidade até décadas recentes como Vila Real, Vila do Conde, Santo André ou Praia da Amorosa.
Corridas de outros tempos no mês de todas as romarias, que são autêntica profissão de fé para os pilotos das redondezas. Desafio que vai para além da própria competição pelos troféus oferecidos pela Comissão de Festas ou mesmo do dinheirinho que muito ajudam os primeiros classificados a suportar as despesas da preparação das motos.
Basta atravessar o improvisado paddock, em rua estrategicamente escolhida, para perceber o admirável mundo das corridas de feira. Máquinas modernas, algumas laureadas com títulos nacionais, outras mais antigas, com níveis de preparação que vão do simples escape de rendimento às carenagens em fibras exóticas. Do pneu do dia-a-dia com muitos quilómetros de bons e leais serviços até às mantas de aquecimento dos ‘slicks’ no mais puro estilo MotoGP.
Espaço preenchido por tendas que servem de boxes às equipas mais profissionais, até ao simples muro que serve de encosto às motos, passando pelas caixas de carga de várias pick-up e furgões. Espaços que, depois do transporte de máquinas e ferramentas, servem, em simultâneo, de ‘motor-home’, oficina e ‘hospitality’ para família e amigos.
Mudam-se os tempos…
Paddock que desemboca diretamente para a reta da meta do novo traçado, mais seguro e bordejado por muitas centenas de fardos de palha, pneus e ainda mais grades metálicas. A segurança é preocupação crescente da Comissão de Festas, sobretudo depois do acidente verificado em 2015. De que, apesar do espalhafato e da contenda judicial, resultou apenas um ferido. Em 2017, na procissão em que se registou a única queda do Grande Andor, foram sete as pessoas a necessitarem de cuidados especiais.
Um circuito, que começou por ter troços em piso de terra e empedrado, evoluindo para o paralelepípedo granítico que marcou cidades e estradas portuguesas durante gerações. No início da década ganhou, novo troço asfaltado, aumentando a extensão do traçado de pouco mais de 500 metros para cerca de 1,5 km. E que em 2019 abandonou a tradicional reta da meta, a subida em empedrado irregular até ao santuário, seguindo para a zona do palco. Onde uma chicane artificial mantinha a velocidade dentro de patamares aceitáveis atendendo à curva apertada, entre casas, que se seguia.
Agora há mais espaço, bastante mais espaço para o público, o que não quer dizer que os espetadores estejam mais à larga, porque, ano após ano, há mais gente.
À boa moda portuguesa
Curiosamente, à hora a que os treinos deveriam começar, ainda era possível passar sem grandes atropelos, pelos passeios que ladeiam a pista. O público acredita que, como bons portugueses que são, também os organizadores protagonizarão algum atraso. Não há problema nem reclamações. Nada de stress que o cabrito e outras carnes assadas fazem prolongar o almoço festivo bem para o meio da tarde. O alarme é dado pelos primeiros zumbidos dos pequenos motores de 50 e 85 cc, a 2 Tempos, e logo o povo começa a afluir em massa. O odor do combustível queimado junta-se ao aroma das tendas dos petiscos e das roullotes das farturas e reforça os sentidos de festa, junto aos sons estridentes que vão saindo das barracas da cassete e do CD pirata.
A tensão vai aumentando, sobretudo para os pilotos, enquanto ultimam pormenores de afinação dos carburadores de mecânicas não raras vezes com mais anos do que os proprietários. Máquinas com tão ampla variedade de preparação como de aspeto, condizentes com equipamentos de segurança que vão desde os mais recentes capacetes e fatos homologados aos blusões de todo-o-terreno com proteções mínimas, botas do dia-a-dia, capacetes sem viseira ou mesmo de motocrosse. E fatos com sinais evidentes de terem já cumprido as suas funções de proteção, acumulando as grandes raspadelas que evitaram na pele dos pilotos.
Santos e pecadores
O público, seguramente mais do que aquele que assiste a uma época inteirinha do Nacional de Velocidade, vai-se espalhando pelos passeios, varandas e janelas, portas de café e todos os sítios de onde seja possível vislumbrar uns metritos dessa arena dos tempos modernos. O desejo de ver bem de perto toda a ação, de sentir na pele (literalmente!) as mais fortes emoções é tanta que homens, mulheres e crianças, mostram-se dispostos a forçar os limites do bom senso. Não fossem as grades, os elementos do Moto Clube Senhora Aparecida e os militares da GNR e não hesitariam em violar os limites da estrada transformada em pista.
As mudanças afastaram o povo impedindo que, como sucedeu décadas a fio, fosse criado uma espécie de túnel que nada ficava a dever às míticas etapas de montanha da Volta à França em bicicleta. Intimidade que, longe de racional, sublinha o estado de paixão assoberbada por tudo o que representa o desporto motorizado. Velocidade e ousadia, o desafio face ao perigo iminente em cada viragem.
Proximidade que parece não assustar os pilotos, antes entusiasmar, sentindo bem de perto o apoio do seu público, ouvindo os gritos de estímulo e as indicações que dispensam os tradicionais quadros com que as equipas informam os seus pilotos a posição na corrida e distância para os adversários.
Estreia no GP da Aparecida depois Ilha de Man e Macau
Perto da vista, perto do coração, diz-se. Acrescenta quem vai à Aparecida ou, uma semana depois, à vizinha freguesia de Caíde de Rei, também muito perto das pernas. Por vezes perto demais, quando uma queda (felizmente raras!) desafia todas as leis da probabilidade, com fintas que levam o corpo a fugir à moto atirada pelo chão adiante por um excesso de confiança, erro mecânico ou uma qualquer distração. Acidentes assumidos como naturais pelo público, preço pouco por uma horas de excitante loucura, de espetacularidade que nem Rossi, Marquez, Lorenzo e companhia são capazes de igualar.
Ah… E os pilotos? Esses destemidos gladiadores de todas as idades, no mais amplo registo imaginável no que à experiência de condução diz respeito e com motos dos mais díspares graus de preparação. Há de tudo e para todos os gostos. Pilotos que até já correram no Campeonato do Mundo de Velocidade aos (pouco) anónimos pilotaços da região.
André Pires foi cabeça-de-cartaz em 2022. Já foi campeão nacional de 125GP (2011), Superstock 600 (2012) e Superbikes (2014) e alinhou no Mundial de MotoE (2021). Também marcou presença em várias ocasiões no Grande Prémio de Macau e já correu na Ilha de Man (2016). Experiência que não o preparou para a estreia na ‘Aparecida’.
“É uma loucura, uma envolvente única. Um ambiente sem igual. Perigoso? Só se anda o que as condições permitem!”. Assim mesmo, pragmático e ponderado, longe da ideia de loucura que os espectadores colam a estes artistas do asfalto. Natural de Vila Pouca de Aguiar e tendo começado tarde nas corridas, apenas aos 16 anos, André Pires é dono de uma carreira consistente, onde não faltam vários vice-campeonatos e muitas vitórias.
Triunfo do Poborsky no Grande Prémio da Aparecida
“Depois de ter experimentado tantas categorias e competir em tantos circuitos faltava a Senhora da Aparecida. O convite surgiu e não podia recusar”, contava entre os treinos de 50 cc e de 85 cc. “Alinhar nas duas cilindradas ajuda a conhecer melhor e mais depressa o circuito. E garante uma dose maior de diversão”. Foi o tempo necessário para recuperar as sensações de conduzir uma 2 Tempos, “o que já fazia há mesmo muitos anos”. Tempo para mudar o chip de condução de “uma moto elétrica com mais de 200 quilos para máquinas muito rotativas e com menos de metade do peso” e logo lutar pelos lugares do pódio.
Ainda assim impotente para travar o dominador do dia: Carlos ‘Poborsky’ Ribeiro. Que, pelo meio de muitos ‘ai jesus’, ‘minha nossa senhora’ ou outras ladainhas apelando à proteção divida, ganhou as duas corridas. “Foi um dia perfeito!” comentava no meio de muitos abraços, beijos e apertos o jovem da Aparecida. Ou não corresse em casa e logo para a vitória!
Criativo, ousado e mentalmente forte, fez jus ao famoso apelido que, imagine-se, herdou diretamente do pai. “Porquê? É grande admirador do Karel Poborský e era assim tratado quando jogava futebol”. A alcunha passou de geração e o gosto pela bola também. Sempre que pode lá vai fazer uma perninha, a centrocampista, como o checo que jogou 112 partidas pelo Benfica de 1998 a 2001, marcando 17 golos. E que é o segundo jogador com mais jogos (118) com a camisola da República Checa. Melhor, só o famoso guarda-redes Petr Cech! Melhor que Carlos ‘Poborsky’ no GP da Aparecida 2022… ninguém!
Sem dinheiro, mas com entrega total
Mas, e o futuro?… ‘Poborsky’ não foge ao contacto, protege a bola e dispara. “Gostava de fazer uma carreira nas motos. Porém não há apoios. Uma coisa é fazer umas corridas urbanas, de feira, outra coisa era correr uma temporada no Nacional de Velocidade. Um jogo de pneus é muito caro e num dia de treinos em Braga ou no Estoril praticamente vai à vida. Aqui dá para vários anos”.
Sem fazer drama, Carlos Ribeiro traduz em palavras um sentimento unânime a boa parte da grelha de partida do Grande Prémio da Aparecida. “Isto é o mais longe que podemos ir. É paixão colocada em pista em prol de momentos de grande diversão e muita adrenalina”. E de um espetáculo onde os audazes artistas dão tudo para satisfazer um público muito exigente, acrescentamos nós.