Quando éramos miúdos, nos anos ’80 e início de ’90, eu e o meu irmão Cláudio, referíamo-nos às nossas saídas de moto e incontrolada vontade de andar de andar nelas, como o “chamamento”. Era o “chamamento”… servia para tudo o que fosse possível fazer para justificar ir andar de moto. Tínhamos outro código para ir roubar rebuçados que a minha avó escondia, mas isso é outro tema.
Texto e fortos: Alex Kossack
Em muitos, ou na maioria dos dias da semana, ainda cedo e depois de acordar, dá-me uma tremenda vontade de ir descomprimir. É o “chamamento”.
Tenho uma boa forma para descomprimir e está lá em baixo onde as guardo, as minhas máquinas. Tenho as que queria, porque cada uma me diz algo único e eventualmente me marcou numa ou outra instância da minha vida. Como o “chamamento”.
Não as tenho por serem somente antigas, clássicas ou raras, embora seja esse o estilo de motos que mais gosto, tenho as que tenho, porque cada uma delas me diz, ou disse algo. Tem mesmo de ter significado para mim, senão não me interessam. Não me chamam.
Também gosto tanto de andar nelas como de as melhorar, mexer, retocar, desmontar, fazer pequenas reparações, invento sempre algo para lhes fazer. Acontece também passar vários minutos por dia, apenas sentado a olhar para elas, a admirar, como se se tratassem de quadros do Monet.
Admiro as linhas, as cores, os cheiros, aquilo relaxa-me, tiram-me eventuais preocupações da cabeça e acaba por ser uma cura zen, que embora ruidosa, me dá paz.
Muitas vezes me perguntam porque não tenho esta ou aquela moto: -“porque olha, estas são raras, e devias comprar e…”, Não, não é assim que vejo a coisa e não é isso que gosto. Tenho de ter “chamamento” nelas também.
Também não sou acumulador nem compro tudo e mais alguma coisa só porque sim, porque o que é chique agora é ter muitas motas de colecção. Agora é moda isso.
Por vezes vejo garagens cheias de motos onde mais de 90% não me diz nada. Muitas vezes nem valem um chavo, mas como foram inflacionadas e agora têm ouro, eles compram para coleccionar. Nem tudo tem o que é preciso para ser “aquele ícone”. É assim que o vejo, quero lá saber o que pensam ou dizem, eu sou eu. Muitos discordam, mas na verdade, estou-me nas tintas para isso. Desde que não me chateiem quero lá saber o que dizem ou pensam.
Acabo sempre por repetir o que digo na altura a quem me pergunta porquê. Respondo sempre que não tenho uma marca preferida e muito menos sou fã boy de uma marca ou outra.
Para dizer a verdade, e por exemplo, não sou nem nunca fui muito apreciador da Harley Davidson ao crescer, mas tenho uma Road King de 99. Não porque goste das Road King, que até nem me interessam muito e podem passar mil ao meu lado que não lhes ligo patavina, mas porque aquela que tenho me diz algo. Acho que é a cor, a forma, o acabamento. Há ali algo que me faz adorar a moto, um “chamamento”.
Honda e Yamaha nunca me disseram algo, com excepção da CBX de 1978 e tem de ser em vermelho, a Bol D’Or, e mesmo esta tem de ser cinzenta e igual à do Freddie Spencer, senão não vai lá, mas não sei explicar, não me “chamam”, difícil explicar isto.
Não me interessam nada, nem mesmo as RC30 ou as RC 45, mesmo sendo raras, escassas e valiosas, nunca me apelaram. Outra que passam a vida a falar-me e a oferecer é a CBR 900RR de 1992 que é uma preferida de muitos, mas a mim, não me diz nada. Independente de ser boa e ter alguma raridade nos dias de hoje, nem mesmo na altura me apelava, havia daquilo ao pontapé na altura, e talvez seja por isso. Estive para comprar uma em 1992 e acabei com uma GSXR 750 do mesmo ano, que era muito inferior à CBR, mas… isso adivinham… tinha “chamamento”.
Sei que as Honda e as Yamaha são motos fantásticas e muito boas, mas não me dizem nada. Mesmo. Sem ofensa para os amantes dessas marcas. Há pessoas que gostam de ver pés de mulheres na internet, a mim dá-me nojo, somos todos diferentes. E muito menos faria como alguns, afogar o ganso a ver pés….. enfim, cada um com a sua. Há gajos que coleccionam selos, caricas, e tenho um amigo que só colecciona óculos de sol da Persol. Estes “chamamentos” são estranhos, mas respeito, mas há cada um, enfim.
Uns descontraem a ler o jornal, outros a passear os cães, (por vezes de tarde também passeio os cães), outros libertam-se a fazer macramé, eu costumo ir andar de moto.
São esses dias os que me divertem mais. Marcam-me um agradável tom para o resto do dia, e nesses dias acabo por fazer mais coisa importantes e ser mais produtivo. Não faço macramé. Acho que aprendi na escola quando era miúdo, mas depressa esqueci essa porcaria inútil, porque também não me chamava, felizmente. Imagino convidar amigos a vir a minha casa para uma festa de arromba, e ter a casa decoradas com centenas de coisas inúteis feitas em macramé. Isso não.
Faço, nesses dias, o mesmo ritual do costume, pequeno almoço a gosto, subo ao meu quarto, olho pela janela para o estado da estrada, vejo o céu, tomo o meu duche, e quando desço, já sei qual vou levar a passear.
Também já me aconteceu descer com ideia de levar uma, e acabo a ir noutra.
Por vezes acontece, como já me aconteceu varias vezes, levar uma, sair e ir passear, normalmente subo ao Cabo da Roca sozinho, ou vou pela marginal a Belém, regresso a casa e faço o mesmo com outra em sentido contrário ou ao mesmo sítio. É tipo dia de jogo em que se marcam 2 golos. Não vejo nem sigo futebol, é como a Honda e a Yamaha, não me diz nada, mas apela a milhares. Sim o “chamamento” da bola passa-me ao lado.
Tenho dias ainda, que não só vou de manha, como vou de tarde também, acontece muito quando um amigo meu vem cá a casa tratar as artroses à velhada da família, eu incluído, em especial nos dias que de manhã fui andar na Ducati. Como ele vem de moto, numa VFR de 1985, costumo ir acompanhar o homem até a meio caminho para Lisboa e regresso a casa. Vamos do Estoril até à autoestrada e regresso pela mesma, para poder dar mais gás aos animais.
Outros dias nem me apetece sair, e acabo no jardim a tratar dos meus bonsais. Deu-me para eles há uns anos valentes e por isso alem das motas, faço bonsais. Polos opostos de interesse, mas de forte estética também.
Aos Domingos vou com a brigada das artroses, que são os meus amigos e eu, ao Cabo e vira o disco toca o mesmo, dei por mim a reparar que faço a estrada da Roca 3 a 4 vezes por semana, mas os Domingos com eles, também são um “chamamento”.
Aos Domingos há que ter mais cuidado com o tipos que andam nas piscinas para cima e para baixo, mas o Domingo também é deles, e é esse o chamamento deles, embora alguns faziam melhor ficar em casa a fazer um feto em macramé ou um suporte para tachos que andar a atravessar-se na estrada para voltar às curvas. Têm todos direito ao seu chamamento, não podem é chamar para o céu quem ainda não tem de ser chamado, e isso acontece, infelizmente, muitas vezes.