A Aprilia RSV4 é muito mais que a porta-estandarte da marca italiana no segmento desportivo de alta performance. É também a herdeira de uma maravilhosa história de sucesso, expressa através dos seus 54 títulos mundiais, sete deles conquistados com este modelo. É a verdadeira interpretação do espírito Superbike segundo a filosofia da casa de Noale.
- Texto: Alberto Pires
- Fotos: Francisco Cruz
No ano de 2009, o lançamento da Aprilia RSV4 surpreendia tudo e todos. Era uma inevitabilidade já que a carreira da RSV Mille estava no limite pois o seu bicilíndrico pouco mais podia render numa configuração estradista. Apesar dos títulos mundiais conseguidos graças à sua performance ciclística, o mercado queria mais potência e, sobretudo, mais cilindros. A configuração proposta cumpriu à risca todas as necessidades, desejos de modernidade e recuperou, ainda, mitos mecânicos! Ou seja, era leve, estreita, agressivamente distinta e montava um motor de 4 cilindros em V! Claudio Lombardi foi o responsável pelo projeto do motor e Luigi dall’Igna (sim, esse, o responsável pelo atual domínio das Ducati em MotoGP) o responsável técnico do motor Aprilia RSV4.
Ao longos dos últimos 15 anos foram criadas várias versões, umas vezes para a tornar mais acessível, montando elementos menos exóticos, outras para elevar a fasquia, quer ao nível da performance quer da ciclística.
Motor exuberante em ciclística assombrosa
A definição ciclística é um assombro, recorrendo ao que de melhor está disponível no mercado.
Sempre o foi, acompanhando a evolução do segmento sem nunca perder a carruagem tecnológica, a referência no segmento. Desde as suspensões Öhlins, na frente e traseira, de alguns anos a esta parte já na versão eletrónica, até às jantes em alumínio forjado. Passando pela travagem, sempre com o que de melhor a Brembo tinha disponível para utilização em estrada.
Afinal, olhar para uma Aprilia RSV4 era a garantia de que estávamos a contemplar o que de melhor havia em termos desportivos. O único elemento que se manteve foi o quadro, sinal da sua extraordinária valia. Já na traseira, foram vários os braços oscilantes utilizados para acompanhar a evolução das suspensões e dos pneus.
No entanto, é no motor que se encontra a razão de ser do caráter especial desta evolução, e o resultado é exuberante! Tendo nascido com 999 cc e 180 cv às 12.500 em 2009, evoluiu com essa configuração até aos 201 cv às 13.000 rpm em 2016. Em 2019, o diâmetro dos cilindros passou de 78 mm para 81 mm, aumentando a cilindrada para os 1077 cc, e no ano seguinte viu o seu curso crescer em 1 mm, elevando a capacidade para os atuais 1099 cc, debitando 217 cv às 13.000 e 125 Nm às 10.500. É certo que, com esta cilindrada, está arredado das grelhas do mundial de SBK, mas como a Aprilia decidiu envolver-se uma vez mais na aventura das MotoGP e não participar nas SBK, não fazia sentido oferecer estas duas cilindradas.
Como num restaurante de luxo
No capítulo da eletrónica mergulhamos num mundo à parte, como se entrássemos num restaurante onde, para além dos menus de luxo, tivéssemos um chefe à nossa disposição para preparar receitas pessoais! Graças à plataforma inercial de seis eixos em conjunto com a ECU Marelli 11MP, a rapidez da capacidade de interligação, análise e resposta permite explorar de forma refinada todas as possibilidades ao nível do controlo do travão motor, controlo de tração, elevação da roda dianteira e ABS.
Como ponto de partida, seis modos de condução, três para pista, sendo dois personalizáveis, e três para estrada, permitindo um deles alterações. Tudo isto é depois passado para a estrada através da interação e ajuste das suspensões Öhlins eletrónicas.
Bem-vindos ao mundo real
Apercebi-me, pouco antes de ir levantar a RSV4 Factory às instalações da Moto Spazio no Porto, que apesar de já ter experimentado uma enorme quantidade de versões, desde a primeira na apresentação mundial em Jerez em 2009 passando pelas SBK de Max Biaggi em Portimão, nunca tinha rodado em nenhuma que não fosse em pista! E, realmente, é enorme a diferença!
O primeiro contacto surpreende pela altura ao solo. A altura do banco de 845 mm já me preparava para essa situação. Mas daí a ter dificuldade em colocar simultaneamente os dois pés, ou as pontas melhor dizendo, não deixou de ser uma surpresa. Parte da responsabilidade está no formato do banco, algo largo junto ao depósito de combustível, obrigando a alargar as pernas. Uns centímetros a menos não prejudicava a sua função e facilitava as manobras.
Os comandos são macios e não temos a perceção, visualmente, da largura da frente, que fruto das novas tendências aerodinâmicas a tornam excessivamente volumosa quando a olhamos de fora. Os espelhos têm a configuração correta, sendo largos na zona exterior, e o acerto da sua posição consegue-se sem dificuldade.
Limitações urbanas
Assim que a colocamos a funcionar identificamos rapidamente a sua sonoridade. Tem um trabalhar solto, algo achocalhado nas primeiras 2.500 rpm, demonstrando uma reduzidíssima inércia. Com os três mapas à disposição, naturalmente escolhi o Street. A embraiagem leve e progressiva ajuda no arranque, mas convém elevar um bocadinho a aceleração. É o lado negativo da pouca inércia, não aceita arranques demasiados suaves.
A limitação seguinte prende-se com o reduzido raio de viragem, necessitando de 6,40 metros para inverter de sentido. Ora, em cidade, o tricotar entre obstáculos e as opções de última hora agradecem uma direção mais aberta. Como parece que estamos numa moto de competição, todas as manobras obrigam a maximizar o início e o fim do espaço disponível. Limitação que é agravada pelo facto dos dedos baterem na carenagem na posição de maior amplitude, obrigando a descer a mão em direção à extremidade do punho.
A praga que limita os prazeres
Assim que arrancamos nos semáforos verificamos que o Quick Shifter agradece que adequemos o abrir do acelerador à rotação a que queremos trocar de caixa. Se quisermos rodar devagar, sobretudo abaixo das 3.000 rpm, para que não se note a mudança de caixa convém estar a acelerar muito pouco, caso contrário sente-se a pancada. É uma questão de hábito, e faz sentido. Para reduzir obriga ao mesmo cuidado. Porém, temos outro problema!
A velocidade máxima permitida dentro das cidades, nem sempre é a mesma e depende do tipo e local de via. Ora, basta acelerar um pouco, mesmo muito pouco, para estarmos completamente fora dos limites. Como estamos a sofrer uma praga de uma espécie infestante que dá pelo nome de “Radarius Absurdios”, ainda vamos ficar estrábicos de tanto ter um olho a apontar para a frente e outro para o lado direito!
Por último, algo curioso que resulta da combinação dos cerca de 200 kg em ordem de marcha, do calor proveniente do motor de elevada performance e do raio de viragem de MotoGP. Assim, se tivermos de fazer alguma manobra em pouco tempo percebemos que nesse dia já não vamos precisar de ir ao ginásio!
E em estrada?
Não há duas estradas iguais, ou ideais, nem um critério que o defina. Cada uma tem as suas virtudes e limitações. Rolar com a Aprilia RSV4 1100 Factory numa que já conheço, sempre me permite alguns pontos de comparação. Para tentar adequar o conjunto ao ambiente troquei o mapa para Sport, e depois para Street. E voltei a repetir a troca mais algumas vezes, enquanto ia forçando o ritmo. Mas cheguei à conclusão que o nível de andamento que estava a imprimir não era suficiente para sentir as diferenças de dois níveis no controlo de tração.
Ou seja, com a qualidade dos Pirelli Supercorsa SP e a eficácia das suspensões é difícil perceber em estrada sinuosa, com trânsito e com algum juízo, a oferta disponível. Percebi também que retiro muito mais prazer de condução nestas condições numa seiscentos desportiva. Ou seja, metade dos cavalos são suficientes para entusiasmar à saída das curvas e a maior inércia e dimensões desta RSV4, neste ambiente, são uma dificuldade com que temos de lidar e que retira muito mais do que aquilo que oferece.
E numa Autobahn?
Pois, não sei, não temos cá disso! Nas nossas autoestradas temos muito trânsito, radares fixos e móveis. Já não bastava ter de andar a olhar para o lado direito, numa autoestrada temos também que andar a olhar para os espelhos, ou a manter velocidades constantes. Ou seja, são pouco os locais e momentos em que não nos limitamos conscientemente. Em sexta velocidade, às 4.000 rpm, já vamos a 120 km/h! O que numa moto que tem o binário máximo às 10.500 rpm e a potência máxima às 13.000 rpm, com a linha vermelha a começar 500 rpm acima, é como ser obrigado a fazer dieta num casamento!
Numa primeira fase percebi que a Aprilia RSV4 é bastante confortável e a proteção aerodinâmica é muito boa. O fluxo de ar que chega ao condutor ajuda a aliviar os pulsos da posição de condução. Enquanto isso, o motor está permanentemente em estado de alerta, o som emitido pelo escape muda e o seu funcionamento torna-se mais preciso. É como ter um Pitbull pela trela, com vontade de confraternizar com um Rottweiler do outro lado da rua, se nos descuidamos somos rebocados à força! Acabei por sucumbir à tentação e, numa zona que me pareceu segura nas suas diferentes vertentes, rodei o punho com decisão. A sensação é surpreendente, até falta o ar, e é distinta do que se vive numa pista.
O irracionalidade da paixão
Em circuito vamos encadernados pelo fato, mais deitados e estamos a contar que o elástico se solte. Aqui acabamos por ser surpreendidos, é tão rápida na aceleração que trocamos de caixa sem olhar para o taquímetro, julgando que já deve estar a tocar na zona vermelha. Por incrível que pareça, quando vi o filme percebi que estava a trocar apenas às 10.000 rpm! Vamos também com um nível de concentração bastante superior ao que experimentamos em pista, em parte porque há muitos mais elementos estranhos que a qualquer momento nos podem condicionar, e porque achamos que estamos a fazer um enorme disparate. Pois, estamos mentalmente condicionados, água mole em pedra dura tanto bate até que fura.
Ou seja, sendo um facto que é em cidade, estrada e autoestrada que a grande maioria das RSV4 fazem os seus quilómetros, justifica-se em face do descrito comprar uma RSV4 Factory? Sim, caso contrário andávamos todos de scooter, com maior ou menor capacidade, numa trail média ou numa naked da mesma classe. Esta Aprilia RSV4 1100 Factory é a materialização do que de melhor a indústria motociclística tem para oferecer. Encerra um potencial sensorial que não desaparece, mesmo que, deliberadamente, não se use, mas está lá, à nossa disposição. Por desadequada que seja em cidade, exigente em estrada ou desperdiçada em autoestrada, só mostra que a irracionalidade no processo de escolha de uma moto continua a ser um fator deliciosamente dominante. E ainda bem!