A V5 do Fagundes
Autor: Mário Campos
Junho 8, 2021
Texto: Mário Campos – Fagundes (grito) ! O´hoó Fagundes (grito mais alto) ! F.A.G.U.N.D.E.S…….. O grito, estridente, ecoou pela pocilga, pelo pátio, pela adega do palheiro (juro que não tem conotações, mas também podemos chamar de quinta !). – Fagundes ! A motrizada caiu, e está debaixo do carro de bois ! Fagundes, que verificava…


- Texto: Mário Campos
– Fagundes (grito) ! O´hoó Fagundes (grito mais alto) ! F.A.G.U.N.D.E.S……..
O grito, estridente, ecoou pela pocilga, pelo pátio, pela adega do palheiro (juro que não tem conotações, mas também podemos chamar de quinta !).
– Fagundes ! A motrizada caiu, e está debaixo do carro de bois !
Fagundes, que verificava o grau dos fumeiros e que ouviu os gritos, e não ligou, desata a correr !
– A motrizada ! A sua motrizada caiu !
Corre célere, pelo pátio terraplanado, antevendo a desgraça…! A sua Sachs V5! A sua querida motorizada, que já tinha sido do seu avô, e que ficou parada décadas na pocilga, até ele a restaurar ao promenor !
Sim ! Lá estava ela, espojada na terra, e meio debaixo do carro dos bois ! Os cromados e os emblemas em relevo, do depósito, cheios de lama, a almofada do depósito (que raio de ideia tiveram os engenheiros da SIS-Sachs, para a colocarem naquele local ?…) rasgada!
Uma mossa no depósito, à beira do indicador do nível da gasolina (se não sabem como era nas V5, vão ver!), e o Fagundes… desaba! Grossas lágrimas de desespero rolam pelas suas bochechas vermelhas e pelo bigode hirsuto (se não sabem o que é, vão ver!).
Ajoelha-se ao lado da V5 e levanta-a, carinhosamente, qual Pietá (também não sabem o que é ? Vão ver !). Fagundes já não quer saber do portão aberto, que permitiu aos patos fugirem todos. Fagundes não se lembra que deixou a porta dos fumeiros aberta, também, e neste momento os dois bois, atraídos pelo cheiro, mordem delicadamente uma morcela e um paio, ambos pendurados. Fagundes não pensa na sua mulher (a dos gritos….!), que aos berros e com uma vassoura, tenta retirar os bois de dentro do galinheiro transformado em sala de fumeiros ! Fagundes não vê a verdadeira orgia de patos ( os seus patos ) a saltar, indiscriminadamente, para dentro das arcas cheias de milho, trigo e feijão, num frenesim cacofónico (este sabem !), de penas e voos curtos, e poeira, muita poeira !
Não. Fagundes já só vê a sua motrizada, outra vez…, na oficina da aldeia (Alçaperna – Lousã!), a ser restaurada ao promenor, outra vez, a fim de poder participar no encontro que se avizinha, de motrizadas antigas, organizado pela comissão de festas do rancho folclórico, de Chiqueiro, (também na Lousã !).
Como esta V5, milhares de motorizadas portuguesas antigas, foram recuperadas pelos filhos, netos e bisnetos de Portugal !
Entretanto, a alguns quilómetros dali, na localidade de Chiqueiro (ainda na Lousã), numa alegre, copofónica e desbragada (esta também sabem) patuscada de amigos (todos sessentões…) na tasca do Sr. Elisiário, a conversa descamba, já toldada por muitas iscas, muitos copos de tinto, muita broa, mais copos de tinto, alguns bolinhos de bacalhau, mais copos de tinto, fatias de presunto cortadas por faca romba, e copos de tinto!
E descamba porquê ? Porque passa das obras a fazer ainda na aldeia, e da contratação do Quim (sim, esse !) para berrar sobre as garagens da vizinha, na próxima festa/romaria, para a moto do Sr. Gervásio, que está presente na patuscada, e é já dos mais toldados !
– Ó… Sr. Gervásio! Chama, com a voz en-ta-ra-me-la-da, o Tono do Talho (era em criança o Tono do ATALHO, dado que andava sempre a correr por atalhos, mas com o passar dos anos ficou o Tono do Talho, porque herdou um talho, na Lousã).
– Ó Sr. Gervásio, aquela sua mota grande aquel…a , o que é ?
O Sr. Gervásio não percebe à primeira, mas como julgou ouvir falar da sua mota, esforça-se por parecer menos toldado.
– A minha mota ? O que tem a minha mota ?
– Aquilo é o quê, insiste o Tono !?
– A minha mota é, uma Honda FÓR…!, enquanto se engasga, não com broa, mas sim com uma lasca valente de presunto (a tal faca romba).
– Uma… FOR ? Pergunta baixinho o Tono, a tentar desviar, ao mesmo tempo, o único pires da mesa que ainda tem azeitonas.
– Sim, uma Honda FOR, com 750 cilindradas e 4 bufadeiras ! Diz, orgulhoso, o Sr.Gervásio!
– E comprou-a aonde? Pergunta outro conviva, enquanto o Tono, com a boca cheia de presunto, azeitonas e broa, resfolega, tentando voltar à conversa.
– Num comprei, ela veio da Venezuela, era de um tio meu, que foi preso !. Responde o Sr. Gervásio, com a calma possível.
– Preso ? Cum catano! Preso ?
Os olhos de todos os convivas arregalam-se, e a conversa está quase, quase a mudar de rumo (Porra ! Uma prisão? De um familiar de um dos nossos ? Chiça que deve ser mais interessante!), não fora a intervenção, atempada do filho do Sr. Elisiário (ainda se lembram quem era ?), rapaz culto (e que leu umas revistas da Moto Revue, deixadas por uma namorada francesa de um conterrâneo):
– Ó Sr. Gervásio, a sua moto, não será uma HONDA CB 750 FOUR ?
– Isso ! Isso, é iiiisso mesmo ! Berra o Sr. Gervásio.
A conversa, no limbo, entre voltar à prisão do tio, ou continuar na mota grande, é subitamente interrompida, quando toca o telefone do guarda da GNR da aldeia, e que, obviamente, também lá estava (na patuscada).
Silêncio, reverente, de todos os comensais, (o Tono do Talho pede mais azeitonas ), enquanto a conversa com a autoridade flui :
– O quê ? Uma cena de pancadaria, em Alçaperna ? O quê, o, o Fagundes deu uma carga de pancadaria, na mulher ? Não foi na mulher ? Num boi ? Mas, mas porquê, por alma de quem ? O
boi deitou-lhe a motrizada ao chão ? Vou já pr’aí ai ! Patos ? O que é que se passa com os patos, do Fagundes ? Não os conseguem apanhar ?! Vou já pr’aí !
O guarda levanta-se, intempestivamente, arremessando com tudo (incluindo o 12º pires de azeitonas do Tono) para o chão!
Os convivas, perdidos de bêbados e com a voz e.n.t.a.r.a.m.e.l.a.l.a.d.a, protestam, um p’ra
cada lado, ouvindo-se no meio da confusão uma pergunta: mas a carga de pancada, afinal foi na mulher, ou num boi ?
Ninguém lhe responde, mas volta a haver respeitoso silêncio, quando o guarda , esbaforido, volta a entrar na tasca, e pergunta :
– Ó Sr. Gervásio ! O jipe não pega ! Empresta-me a sua mota, pra eu ir tomar conta da ocorrência?
Moral da história (desta…): muitas das motos e motorizadas antigas, que cruzam as nossas estradas e atalhos, foram herdadas, e/ou, trazidas pelos nossos valorosos emigrantes !
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