A síndrome do MotoGP

A síndrome compartimental é conhecida há longos anos, mas a sua crescente incidência em desportistas e, sobretudo, em pilotos de competição (nomeadamente os tão mediáticos casos dos pilotos de MotoGP que recentemente sofreram e foram operados por este motivo) trouxeram este tema à ribalta e suscitaram dúvidas e receios em muitos dos aficionados do desporto motociclista.

  • Texto: José Santos Dias
  • Fotos: ICATMA, KTM, Ducati Corse, Fabio Quartararo, Lorenzo Dalla Porta, Iker Lekuona, Aleix Espargaro
  • Infografias: Fisiocenter Nature, Juan Arnal
Fabio Quartaro foi um dos pilotos mais mediáticos operados à síndrome compartimental este ano, até por ser o líder destacado da categoria de MotoGP. Ainda estão bem presentes as imagens da sua perda de andamento quando liderava a prova de Jerez de la Frontera, cedendo a vitória a Jack Miller.

Mas, afinal, o que é a Síndrome Compartimental?

Em que consiste exatamente este problema, porque surge e porque é necessária, em alguns casos, a operação? A Síndrome Compartimental (SC) resulta do aumento da pressão num determinado segmento corporal. Ou seja, no interior de uma zona anatómica mais ou menos delimitada e restrita, ocorre, por causas diversas, um aumento da pressão. Como este aumento ocorre numa zona em que não há possibilidade de alívio da mesma, uma zona fechada (que jeito daria termos um escape ou umas válvulas em determinadas partes do corpo), a pressão crescente causa a compressão das artérias que irrigam os órgãos, músculos e nervos aí localizados.

O aumento de pressão ocorre pela existência de compartimentos fechados, limitados geralmente por fáscias (estruturas de um tecido especial, fibroso, denso e resistente, conhecido como tecido conjuntivo), que envolvem outros órgãos e estruturas, limitando a capacidade de difusão e alívio da pressão.

Como consequência, existe isquémia, ou seja, deixa de ocorrer a normal irrigação de todas essas estruturas. Se não chega sangue a estas estruturas, as pessoas afetadas vão sentir dor e alterações da sensibilidade e da força muscular, respetivamente por isquémia dos nervos e dos músculos. Existe aumento edema (inchaço) da zona, observando-se mesmo, por vezes, um aumento visível da dimensão desse segmento e um enrijecimento da mesma área.

Imagens intraoperatórias de fasciotomias musculares volares e dorsais num antebraço de um atletas profissional (ICATMA)

Causas da Síndrome Compartimental (SC)

Classicamente, a compressão podia ser causada, por exemplo, por uma fratura óssea, pelo gesso colocado para imobilizar uma fratura, por traumatismo (com consequente edema), por edema causado por exemplo por queimaduras ou por hemorragia. Outras causas mais raras podem também causar este problema: braçadeiras ou garrotes colocados por algum motivo (e deixados tempo demais…), após cirurgias – com hemorragia ou edema a causar o aumento de pressão ou, por vezes, líquido infundido/instilado (por exemplo quando se coloca um acesso vascular venoso ou arterial ou em cirurgias endoscópicas, que utilizem líquido, como as artroscopias), ou infeções.

Aleix Espargaro (deitado na maca) é observado à cirurgia a que foi sujeito em Maio passado para resolver as situações causadas pela síndrome compartimental.

Síndrome compartimental aguda

Em alguns casos pode mesmo ser necessária uma cirurgia descompressiva de urgência, para salvar um membro. Os sintomas desta situação – SC aguda – são dor, alterações da sensibilidade (diminuição da sensibilidade ou parestesias, ou seja, sensações diferentes do normal, como formigueiros do local afetado), palidez cutânea, diminuição da força muscular ou mesmo paralisia dessa zona/membro e ausência de pulsação (ou seja, não se consegue palpar o pulso do membro superior ou inferior afetado pela SC). Em inglês, as manifestações clínicas desta situação são descritas como os ‘5 P’s’ (de Parestesias, Palidez, Paralisia, ausência de Pulso, sendo o último de Pain, ou seja, dor).

Muita da arte tatuada no antebraço de Fabio Quartararo destroçada pela cirurgia a que o francês da Yamaha foi sujeito (foto: Gareth Harford).

Síndrome compartimental crónica

Os sintomas da SC crónica são diferentes e geralmente menos intensos, mas podem ser francamente incapacitantes, porque muitas vezes são recorrentes. Os sintomas desta situação surgem geralmente depois de um esforço prolongado e/ou intenso, sendo causados pelo edema e/ou aumento dimensional dos músculos dessa zona. Manifesta-se por alterações da sensibilidade (diminuição da mesma ou pelos conhecidos formigueiros), diminuição da força e dor, que pode ser de diferentes tipos, intensidade e duração. Estes sintomas podem melhorar, aliviar por completo, mas voltar a surgir quando se repete o traumatismo (ou seja, e mais frequentemente, quando se retoma o exercício).

Jack Miller nem precisou que o médico lhe retirasse os pontos, já que estes acabaram por rebentar na sequência de uma queda sofrida pelo australiano no Grande Prémio da Catalunha.

Como vimos, pode ser necessário tratar a SC de uma forma urgente. De facto, em alguns casos, se não for feito um tratamento imediato e a pressão não for aliviada de imediato, pode ocorrer uma perda de função de um segmento corporal, por isquémia irreversível. O tratamento é cirúrgico e consiste numa fasciotomia, ou seja, no corte, na secção, da fáscia que envolve a zona do membro superior ou inferior afetada pelo problema.

Lorenzo Dalla Porta foi a mais recente ‘vítima’ do bisturi. Aqui ao lado do Doutor Caforio, do Policlinico San Donato, de Milão.

A síndrome compartimental e as duas rodas

Este tema ganhou notoriedade nos últimos tempos pelo elevado número de pilotos que sofreram deste problema e tiveram de ser operados. Não só os de motocrosse, em relação aos quais este problema era já mais falado, mas também os de de velocidade, particularmente os de MotoGP, que pilotam verdadeiros monstros, cada vez mais potentes e que exigem cada vez mais força e intensidade de ação dos braços e antebraços. Nestes caso, o aumento de pressão é causado pelo microtraumatismo repetido em atletas que têm os músculos dessa zona francamente desenvolvidos e aumentados de volume, hipertrofiados – causando, só por si, uma diminuição do espaço disponível para outras estruturas, como vasos e nervos.

No IMED de Valência, o Doutor Eduardo Sánchez Alepuz resolveu os problemas de SC do espanhol da Tech3 KTM, Iker Lekuona.

Embora não seja provável que um motociclista normal, mesmo com uma utilização diária da sua companheira de estrada, desenvolva estes sintomas e este quadro (clínico, não relacionado com a ciclística…), tal não é impossível, pelo que, se sentir os sintomas acima referidos, deverá procurar ajuda e consultar o seu médico assistente ou um ortopedista, de modo a prevenir a evolução e o agravamento do problema que, como vimos, pode ter consequências devastadoras para o membro afetado.

José Santos Dias é o Director Clínico do Instituto da Próstata, motociclista apaixonado pelos passeios e viagens, com quem já tivemos oportunidade de percorrer algumas das zonas mais emblemáticas do Alto Douro. Na forja está uma incursão a Itália e outra à Namíbia. Da sua pena contamos ir partilhando mais algumas temas relacionados com a moto e a saúde dos motociclistas.

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