A moto do Jákim, o caçador de tubarões.

  • Texto: Alex Kossack

Às vezes fico na dúvida se sou um num milhão, ou se são milhões à minha volta. Acho que todos nós gostamos de pensar sermos, ou pelo menos ansiamos ser, um num milhão. É mais fixe assim, vemo-nos melhor ao espelho.

No nosso tempo era assim. Víamo-nos no espelho do quarto e ficávamos contentes, hoje metem-se fotos do almoço, de uma sessão de borra cueca no ginásio, de vários amigos aos berros agarrados uns aos outros numa festa ou dos decotes para se sentirem melhor, no caso das meninas.

As prioridades e os interesses mudaram tanto que já não me identifico com esta geração, e se alguém disser alguma coisa, vai para casa com o rótulo de tóxico, ou intolerante. Acho piada que os que mais se queixam da intolerância, hoje são os mais intolerantes, mas quero mesmo que se lixem.

Voltando às motos. Algumas das lembranças mais frequentes que tenho do final dos anos 80 e início dos nossos idos anos 90, tirando o Freddie Mercury que apanhou SIDA e morreu assim tipo, já está, e o Tomás Taveira que mostrou ao mundo o poder de uma luz vermelha, era o que fazíamos com as nossas motos.

O meu irmão Cláudio teve um grande desgosto com a morte do Freddie Mercury, já eu tentava a todo custo obter uma cópia do famoso vídeo do Arquitecto It´s a Sony.

Que grande cowboy era esse, no fundo estava uns anos à frente da sua geração. Vendo bem, ele até foi pioneiro de redes sociais, primeiro porque todos queriam uma cópia do vídeo, e segundo porque foi o primeiro a meter coisas indecorosas e chocantes a público. Coisas que hoje, quando expostas, já não chocam ninguém. Éramos mais castos, sem ser mais castos.

Quando adrenalina significava ‘kit d’unhas’

Voltando às memórias de há 30 anos, não me refiro às barbaridades e patetices habilidosas que fazíamos no asfalto, a tentar ser o Doohan, mas sim o que fazíamos fisicamente às motos.

Desgraçadas, era cada corte e mutilação que por vezes dava ideia terem sido atiradas ao mar para alimentar tubarões.

O Jákim, que não é ninguém em particular, mas é aquele nosso amigo que todos têm, e que podia mesmo chamar-se o Jákim, (e se não sabes quem é, então é porque o Jákim és tu), esse então exagerava, e se pudesse tinha até tirado as rodas da moto.

Mas como sem elas a mota provavelmente faria barulhos estranhos ao andar, ele acabou por ceder e lá voltou a instalar as rodas, mas de resto ia quase tudo fora.

O quadro ficava, já o travão da frente, só não ficou mais tempo fora porque apanhou um valente cagaço e lá reconsiderou meter o travão de novo na moto. Jákim o destemido. Para ele a palavra adrenalina era uma cidadã da Bósnia ou do Cazaquistão. Sabíamos lá nós, nesses anos, o que queria dizer adrenalina, são modernices. Para nós eram as unhas. Não era só eu que via isso, e de certa forma, também fazia estas curas de emagrecimento motociclísticas, era geral, todos fazíamos.

Tipo, se não cortasses o guarda-lamas de trás, não recebias ‘likes’ psicológicos e sociais de fixe, porque eram os únicos da altura. Na altura os ‘likes’ eram pessoais e feitos com acenos aprovativos de amigos de carne e osso, ou uma palmada nas costas. Os ‘não likes’, eram atribuídos com um achincalhamento humorístico, na próxima paragem onde houvesse mais gente. Hoje não se pode, é racista e intolerante, enfim.

Todos diferentes mas todos iguais

Claro, na altura havia muito menos motos com mais de 600 cc que há hoje, mas mesmo assim, havia bastantes, e tínhamos de ser diferentes, mas sem querer éramos todos iguais, porque na nossa busca pela diferença, acabávamos todos a fazer o mesmo, e mutilámos centenas, senão milhares de motas.

Se soubesse na altura o difícil que é encontrar um guarda-lamas de trás para uma GSXR 750 de 1990, ou um escape de origem para uma ZXR 750R de 91, tinha estado quieto. Já nem falo dos piscas e dos diferentes remates de plástico tão em voga na altura! Estou a pagar hoje as mais variadas dentadas de tubarão que dei nas minhas motos. Tipo karma. Filho és, pai serás.

Não, nada era como hoje, e tenho pena que estes jovens que por aí andam agora, não tenham visto a loucura que foi o final anos 80 e início dos anos 90 nas estradas de Portugal, numa 750 que tinha de ter pelo menos dois R para ser uma moto digna.

Eram outros tempos, também a polícia não entrava a matar, os tempos mudam, e as ações/reações também mudam. Eles, polícia, hoje apenas reagem ao que enfrentam. Nós fugíamos e respeitávamos, hoje não se foge mas também não se respeita. Os tempos mudam. Os tolerantes são intolerantes.

Quem coleciona motos antigas, como eu, e tenta devolver a estas a sua glória de origem, sabe bem do que falo e decerto já pensou o mesmo. Que idiotas éramos. Dar as motos aos tubarões.

Mudam-se os tempos…

Poderia isto acontecer com as motos de hoje? Acho que não. E porque acho que não?

Sobre as motos de hoje, e se calhar sou só eu que penso assim, acho que é quase impossível reconhecer ou diferenciar as marcas, ou os modelos de hoje no geral, vejo-as quase todas iguais.

Fazem-me lembrar Transformers, não digo que sejam feias, (algumas são mesmo horríveis, desculpem a franqueza), decerto são bem melhores na condução, mas há muitas mais marcas, e modelos, algumas nem sabia existirem, outras que retornaram das cinzas, venderam 10 motas e voltaram a fechar a loja.

Mas são quase todas iguais, ou parecidas, é difícil diferenciar ou distinguir umas das outras.

Com esta banalização e igualdade nas linhas corre-se o risco, como aconteceu com os carros Japoneses e Coreanos, desenhados todos pelo mesmo software, de saírem todas iguais. Quando isso acontece, inevitavelmente vem o despir de carácter. Por isso, pegar nelas e dar aos tubarões ia fazer a coisa pior. Quando já não há carne, não se podem deitar fora os ossos.

Acho que é por isto que me sinto mais atraído por motos do final dos anos 80 e início de 90. A minha moto mais nova é de 1999. Na altura as motos eram todas diferentes, e conseguíamos distinguir algumas só pelo barulho que faziam.

Havia outra coisa. As más eram baratas, as boas eram caras. Agora a qualidade deixou de ser primordial, para dar lugar a popularidade, visual ou ao status. Os tempos mudaram.

As motos antes vinham cheias de extras e equipamento que tirávamos, hoje vêm sem nada e se querem extras têm de comprar. Coisa estranha. Sei que por resultado da feroz competição de mercado.

A felicidade num vinil dos Led Zeppelin

Quando na altura, mais jovens, nos idos anos 90 andávamos nas nossas GSXR e ZXR 750, as mesmas que voltámos a ter agora, éramos felizes por as poder ter e andar nelas. Mas agora mais feliz sou, porque continuo a ter e a andar nelas, e desta vez sinto-me diferente.

Mas agora, estas motos, são chamadas de clássicas ou antigas e têm um outro charme. Um pouco como comparar o Kashmir dos Led Zeppelin (que é intemporal e até o meu mais novo de 15 anos gosta de ouvir) com um disco da Britney Spears, que durou uma semana e faz o meu cão ter vontade de lamber o cú para esquecer o som.

A dieta da engorda

Por isso, hoje em dia reparo que a tendência para ser diferente, é exatamente o contrário do que fazíamos, e a moda agora é adicionar coisas, porque as motas novas não têm nada para tirar.

Desde ailerons a vidros escuros, mais altos, malas, caixas de Uber e de correio, riscas e números do Rossi, manetes cor de laranja, com a proteçãozinha tipo dedal para os dedinhos, eles metem tudo nas motos. Nós queríamos tirar peso, estes agora querem engordar.

Regressa assim, como se de um círculo se tratasse, a minha inevitável vontade de ser diferente, só que desta vez, em vez de ser diferente com uma serra, sou diferente por andar em motos que foram ícones e continuarão a ser.

E assim, desta vez, em vez de ser o Jákim a dar a moto aos tubarões, são os tubarões a comer o Jákim, que já não se pode chamar Jákim, porque ofende alguém online!

Jákim, compra uma mota antiga e restaura-a. Motos novas todos podem ter, mas uma ZXR 750R K1 de 1991, já pouca gente consegue encontrar, quanto mais uma que nunca foi comida de peixe. Estas já não dou aos tubarões!

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